Thaís Andrade; 06/03/2023 às 10:00

Obras de arte e ferramentas de inteligência artificial

Entenda a discussão e acompanhe a opinião de profissionais de artes visuais sobre a relação entre arte e IA

Não faz muito tempo que viralizou nas redes sociais uma trend que consistia no compartilhamento de avatares dos usuários, produzidos por meio de uma ferramenta de inteligência artificial (IA).

No final de 2022, uma polêmica envolvendo arte gerada por IA também ganhou visibilidade: a obra “Théâtre d’Opéra Spatial”, de autoria de Jason Allen, ganhou o primeiro lugar da categoria “Artes Digitais/Fotografias Manipuladas Digitalmente” do concurso de arte da Colorado State Fair. A discussão ao redor do caso se deu pelo fato de Allen ter usado a ferramenta de inteligência artificial Midjourney para produzir a obra.

Além do Midjouney, outras ferramentas, como Dall-E 2 e Stable Diffusion, podem, de maneira geral, gerar imagens a partir de informações e textos descritivos digitados pelos usuários.

Imagem: Théâtre d’Opéra Spatial, de Jason Allen (Reprodução da internet)

A complexidade do assunto é explicar como se dá o processo pelo qual os algoritmos dessas tecnologias chegam às imagens geradas. De maneira simplificada, conforme explica reportagem da BBC News, os programas transformam a frase escrita pelo usuário em uma sequência numérica inventada pelo próprio algoritmo, que, em seguida, encontra o seu equivalente em outra sequência numérica que representa uma imagem, para, então, decodificar o resultado em uma ilustração ou foto.

“Esse tipo de inteligência artificial funciona como uma rede complexa de neurônios que é treinada com bases de dados de bilhões de imagens retiradas da internet acompanhadas de textos descritivos. Em seu processo de aprendizado, essa rede, que é feita de funções matemáticas complexas, mapeia cada pedaço dessas imagens e desses textos estabelecendo relações entre eles”, descreve a reportagem.

Faca de dois gumes

A evolução da inteligência artificial e a polêmica em torno de seu uso para a criação de obras de arte se divide, de maneira geral, em duas dúvidas principais: quais seriam os benefícios e quais seriam os malefícios de tal tecnologia?

O vasto número de imagens utilizadas no treinamento dos algoritmos, por exemplo, gera questionamentos relacionados a direitos autorais. Além disso, algumas preocupações surgem principalmente da indústria criativa e de profissionais como ilustradores, designers e artistas visuais, que, até o momento, parecem ser os mais impactados por essa tecnologia, já que a qualidade e a velocidade com as quais ela é capaz de gerar imagens geram algumas perguntas, como, por exemplo: será que o trabalho de artistas reais será substituído por IA? A arte gerada por IA realmente é um tipo de arte? Quais são os limites éticos desse tipo de produção?

A problemática é realmente complexa. Tecnologia e arte têm uma relação direta há muito tempo. Carolina Valentim Loch, em “A obra de arte na era da inteligência artificial”, mostra como a criação artística historicamente recorreu à tecnologia para ser produzida e ganhar forma, sendo tão fundamental quanto sua concepção e o imaginário do artista. A autora, entretanto, afirma que há diferença entre produzir uma obra de arte utilizando tecnologia – como um pincel – e usar inteligência artificial: “O primeiro possibilita uma extensão do corpo humano, uma ferramenta para realizar aquilo que a mão sozinha não consegue. Já o segundo não é apenas uma extensão, mas opera para interferir propositalmente no processo de concepção criativa”.

Em entrevista ao Mercadizar, alguns profissionais da área de artes visuais opinam sobre os possíveis lados positivos e negativos do tema. Para o designer Renato Andrade, ao fornecer resultados impressionantes em poucos segundos, as ferramentas de IA desvalorizam o trabalho dos profissionais da área.

“Por outro lado, elas são fontes riquíssimas de inspiração, experimentação e brainstorming. Como é um caminho sem volta, acredito que devemos tirar o máximo proveito dessas ferramentas para melhorar o nosso próprio trabalho como profissionais”, afirma Renato.

Já o ilustrador Gabriel Pivoto afirma que “a inteligência artificial vem para agilizar processos, para que a procura dentro de um banco de imagens seja muito mais eficiente; para que o alinhamento de uma ilustração ou vídeo seja muito mais eficiente. Ela vem para dar velocidade aos processos. Por exemplo, dentro de uma criação de storyboard em que preciso de um tipo de iluminação ou ambiente muito específicos, [com a IA] vou conseguir criar com mais agilidade. Mas de forma alguma ela vai substituir o profissional capacitado”.

Pensando em benefícios que podem ser oferecidos pela tecnologia, a artista visual Mandie Gil afirma que a única vantagem que enxerga é em casos nos quais os criadores precisam de referências muito específicas, que não conseguem encontrar facilmente. Nesse cenário, a inteligência artificial pode ser usada para gerar imagens a partir das ideias e necessidades do artista, que posteriormente as usaria como referência para criações próprias.

“A arte que sai de uma ferramenta desse tipo é basicamente uma colcha de retalhos do que ela encontra na internet. Para mim isso não é arte, porque não existe [nas imagens geradas por IA] sentimento, criação, criatividade; não existe cultura envolvida. E você não traz nada de si, porque não é um ser humano criando, e sim uma máquina”, destaca a artista.

Em concordância com essa linha de pensamento, o autor Sergio Venancio Júnior, no artigo “Arte e inteligências artificiais: implicações para a criatividade”, questiona se um dia a inteligência artificial terá autonomia criativa comparável à de um artista humano, já que o processo de produção de arte de uma pessoa envolve aprendizados, experimentações, vivências e habilidades adquiridas ao longo de sua formação de vida.

O autor afirma que “para realmente fazer arte, a inteligência artificial precisaria ter autonomia suficiente para estabelecer seus próprios critérios estéticos, sem qualquer interferência de um humano, e fazê-lo sem que isto esteja subjugado a outros propósitos”.

A autonomia das ferramentas de IA para que haja a criação de obras de arte ou imagens também é bastante discutida dentro desta temática. Como afirma Carolina Valentim Loch, em “A obra de arte na era da inteligência artificial”, mesmo que a ferramenta tenha certa autonomia, ela ainda é dependente dos comandos de humanos durante os processos de criação das obras ou imagens.

Porém, ainda que dependa, até certo nível, de humanos para serem operadas, não se deve deixar de lado os questionamentos quanto a uma possível substituição ou grande desvalorização dos profissionais de artes visuais, design, ilustração e outros pelas ferramentas de inteligência artificial, tendo em vista que esta tecnologia ainda passará por mais fases de desenvolvimento e evolução técnica e científica ao longo dos próximos anos.

Outra observação a ser considerada – e que vai além dos questionamentos em relação à arte – é quais limites esse tipo de tecnologia ainda atravessará. Em tempos de fake news e os já populares “deepfakes“, qual seria uma possível colaboração das ferramentas de inteligência artificial para a produção de imagens e vídeos cada vez mais realistas, mas que envolvem informações falsas? Algumas das ferramentas de IA já apresentaram exemplos negativos de sua capacidade de criação.

“Comandos de texto com o conceito de ‘mulher bonita’ ou com etnias específicas como ‘mulher asiática’ costumam gerar mais imagens de nudez por causa da prevalência de pornografia na internet. Da mesma forma, pessoas não brancas têm reclamado da dificuldade das inteligências artificiais de criar imagens com suas características. E nas indústrias criativas, que estão sentindo os impactos imediatos, já começaram os protestos”, afirma a reportagem da BBC News.

Ainda que seja uma ferramenta revolucionária com potencial para ser utilizada no desenvolvimento de diversas áreas científicas, indo além das artes visuais, a inteligência artificial é mais uma tecnologia que merece atenção e cuidado quanto a possíveis malefícios e um uso responsável.

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