Na região Norte os presídios recebem quase três vezes mais presos do que podem suportar. O Amazonas é um dos estados com a maior concentração de presidiários do país. A população prisional feminina total passou de 33 mil para 42 mil. Existem mais de 400 presas gestantes no país*.
A partir de um sonho, caminhando dentro de um presídio no meio da Amazônia, a professora de teatro Annie Martins deu vida ao Projeto Arbítrio, de “Livre Arbítrio”.
O teatro do oprimido
Ao escrever sobre Teatro Político e Pós-Dramático, Annie começou a sonhar muito. O Teatro do Oprimido serviu de base para a criação do Arbítrio. O método, idealizado por Augusto Boal, une diversos fragmentos de opressão, da escravidão à processos midiáticos, trabalhando com temáticas que envolvem o cotidiano de toda a população oprimida. Através dele, Annie pôs em prática seu mestrado. Desenvolvido desde 2014 como projeto de extensão dentro do Curso de Teatro da UEA, o Arbítrio conta com alunos de outros cursos, entre eles Direito e Medicina. A atuação é feita dentro do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e na Unidade Prisional Semiaberto Feminino (UPSF). O objetivo é, a partir do teatro, incentivar as participantes no processo de reintegração, além de promover o empoderamento das mesmas.
“Eu tive um sonho e vários insights desse projeto entrando na prisão no meio da Amazônia. Até que um dia fui entregar alimentos em uma fundação e três mulheres dessa instituição me falaram: Annie, a gente tá indo visitar a cadeia Vidal Pessoa, você quer ir?”.
Assim começou sua jornada dentro das prisões. Eram mais de 130 mulheres vivendo em um local extremamente precário. Lá, se iniciou o jogo teatral.
“Meu primeiro choque foi quando elas foram liberadas no pátio da cadeia para o jogo. O chão estava extremamente quente e elas saíram descalças, correndo feito animais. Aquilo me chamou muita atenção, principalmente quando eu percebi que todas eram chamadas por números”.
O início do jogo consiste em cada uma falar seu nome por meio de movimentos corporais. Esse momento transformou as mulheres que estavam ali, pois algumas delas não ouviam seus próprios nomes há tempos.
“Eu percebi a força do teatro naquele momento, naquele lugar”.
*Dados do Ministério da Justiça
O Arbítrio no COMPAJ
Tempos depois, Annie foi convidada a levar o projeto para o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ). Inicialmente, o projeto foi aplicado apenas no presídio masculino, mas apesar disso, foi no presídio feminino aberto e semiaberto onde foram vistos os maiores resultados. A prisão, que é um centro de opressão, deu voz àquelas mulheres oprimidas através do teatro. Elas, que em um primeiro momento pareciam hostis, mostraram um lado desconhecido por todos ali. O teatro possibilitou essa humanização e promoveu um diálogo mais aberto, além de desabafos e denúncias.
“Aos poucos consegui conquistar aquelas mulheres. Com o projeto, eu descobri também diversas ilegalidades que elas eram submetidas, e eu comecei a denunciar”.
Com as denúncias, o Projeto Arbítrio conseguiu ir além do teatro. Ele ajudou as presidiárias a tomarem consciência sobre si, agindo como instrumento conscientizador e de defesa contra violências. Como fruto do Projeto, as participantes se mostraram mais comunicativas, diminuíram suas rivalidades e começaram uma busca por redimição com seus familiares. Além disso, algumas delas perceberam que a causa de estarem ali nem sempre era consequências de seus próprios atos.
Fora das grades
A primeira apresentação das presidiárias fora do COMPAJ causou um grande impacto tanto nelas quanto nos espectadores. As participantes do Arbítrio encenaram fardadas e algemadas, frisando o forte estigma social carregado por elas. Haviam dezenas de repórteres prontos para fotografar as prisioneiras, policiais fazendo escolta e pessoas extremamente intrigadas. Para eles, aquilo era excêntrico, uma espécie de zoológico onde os animais enjaulados foram “soltos” para dar início ao espetáculo.
Aquela foi a primeira vez em anos que algumas daquelas mulheres entraram em contato com o resto da sociedade. Foi um ato verdadeiramente revolucionário.
O projeto contribuiu não só com mudanças internas, mas também na ressocialização das participantes. Segundo Annie, ela não age para reeducar as meninas do projeto. “É a sociedade aqui fora que precisa ser reeducada. Elas são produto dessa sociedade machista, racista e opressora. Elas são consideradas a escória, o lixo humano que nós mesmos produzimos”. Annie ressalta que não foi ela quem conquistou as presidiárias, foi o teatro. Ele foi mais que fundamental nesse processo.
Reconstrução
Apesar do projeto ser voltado para a construção social das presidiárias, o resultado foi além do imaginado. As apresentações seguintes foram feitas sem algemas e sem escolta interna, um verdadeiro voto de confiança. O “livre arbítrio” foi dado para provarem que o projeto de fato as modificou.
Com todos os relatos e experiências, Annie conta que se reconstruiu com o Projeto Arbítrio. “Na prisão eu aprendi a me posicionar. Vi que tinha uma voz dentro de mim. Passei a não admitir mais nenhuma opressão na vida”. Ao ensinar aquelas mulheres, ela criou uma relação de confiança e recebeu os mais sinceros sentimentos, entre eles o amor. Algo inimaginável quando se pensa em uma prisão.
Apesar de todos os estigmas que o lugar carrega, Annie afirma que não sente medo de estar ali. “Confio completamente na metodologia do Teatro do Oprimido. Ele te afeta e envolve de um jeito que não há para onde correr, promovendo assim uma verdadeira transformação. É quase uma hipnose”.
Hoje, o projeto que surgiu a partir de um sonho segue na luta por mudanças e empoderamento feminino. Para 2020, Annie espera abranger mais cursos e dar mais visibilidade para o Arbítrio, pois segundo ela, ninguém acaba com uma opressão sozinho.
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