Nos últimos anos, diversas formas de discriminação como o racismo, o machismo e a homofobia ascenderam ao debate popular e passaram a ser amplamente discutidos na sociedade. Apesar disso, um assunto em específico ainda tem pouca visibilidade: a luta contra o capacitismo. Você sabe o que o termo significa ou ao menos já ouviu falar sobre? Esse conceito, ainda pouco conhecido, se refere ao preconceito contra pessoas com deficiência (PCDs).
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 10% da população possui algum tipo de deficiência. No Brasil, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45,6 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência, o equivalente a 24% da população. Essa deficiência pode ser visual, auditiva, motora, mental ou intelectual. Ainda segundo o censo do IBGE, a deficiência mais recorrente no Brasil é a visual (18,6%), seguida da motora (7%), da auditiva (5,1%), e, por fim, da deficiência mental (1,4%).
O termo capacitismo foi traduzido do inglês ableism, sendo utilizado para descrever a discriminação estrutural, o preconceito e a opressão que PCDs sofrem, desde questões que envolvem a acessibilidade (ou falta dela), exclusão e a forma como a sociedade as trata. O conceito é pautado na construção social de um corpo padrão tido como “normal” e na subestimação da capacidade e aptidão de pessoas em virtude de suas deficiências, como explica Ingrid Godeau, 22, graduada em Biotecnologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e portadora de Charcot-Marie-Tooth (CMT), uma doença nervosa degenerativa que afeta os nervos motores. “Capacitismo nada mais é que a discriminação e até mesmo o preconceito com quem tem uma deficiência, tratando de forma inferior, diferente e até excluindo de grupos com outras pessoas que são consideradas normais”, afirma em entrevista ao Mercadizar.com.
O limite entre ser “solidário” e capacitista é uma linha tênue. Muitas vezes, as pessoas com deficiência são invisibilizadas pelo “heroísmo” que lhes é atribuído quando são tidas como “exemplos de superação”. O suposto elogio esconde o preconceito e escancara o capacitismo estrutural em nossa sociedade. O capacitismo pode se manifestar todos os dias de maneiras distintas, não apenas através de situações explícitas. É capacitismo quando você infantiliza PCDs, usa espaços reservados, tem pena, chama de herói ou se dirige a um acompanhante e não à própria pessoa, por exemplo. Estas são muitas das situações normalizadas e que, embora não sejam ditas ou feitas em tom maldoso, são atitudes ofensivas e interferem na liberdade individual do outro.
“Às vezes, as pessoas nem percebem que estão agindo assim porque é algo que existe há muito tempo e a gente percebe isso na arquitetura inacessível e até mesmo nos comentários de pessoas mais idosas. Hoje em dia, eu recebo muito uma opressão passiva, que é aquela em que uma pessoa fala ou pergunta pro meu acompanhante algo que era pra mim. Um exemplo que eu vivo é o de garçons perguntando pra pessoa que tá comigo o que eu iria comer. O médico perguntando da pessoa que está comigo o que eu tô sentindo. Isso é um tipo de opressão passiva que hoje em dia é mais comum, porém muitas pessoas recebem a opressão ativa que vai desde insultos até mesmo um ‘eu acho que você deveria trocar de profissão’ ou ‘você tem certeza que consegue fazer isso’”, completa Ingrid.
Apesar de PCDs terem seus direitos garantidos por um conjunto de legislações nacionais e internacionais, essas normas não são realmente colocadas em prática, seja por puro desrespeito, falta de verbas ou até mesmo desinformação. Uma pessoa que nunca teve contato com alguém que tenha alguma deficiência e tenha autonomia, proatividade e uma vida regular logo imagina que elas sejam pessoas fragilizadas, dependentes e até mesmo inferiores. Enquanto essas pessoas continuarem invisibilizadas, o capacitismo estrutural persistirá. Nós precisamos conhecê-las realmente.
Diagnosticada com paralisia cerebral espástica quando criança, doença que consiste na presença de rigidez muscular, dificuldade de movimento e uma leve limitação no andar, a jornalista manauara Wal Lima, 29, contou ao Mercadizar.com que leva uma vida normal: trabalha, estuda e sempre procurou se destacar na profissão que escolheu exercer.
“Eu sempre convivi com o preconceito, quando criança, era uma menina sonhadora e fiz o possível e impossível para não absorver os insultos que sofria. Hoje, posso dizer que já superei o preconceito das outras pessoas, e as vejo como pessoas que não evoluíram e que não conseguem enxergar além dos olhos, o que cada pessoa tem em seu interior, porque todos nós temos defeitos, alguns físicos e outros no caráter! Atualmente ocupo uma vaga especial em um órgão do Estado como jornalista e também tenho minha empresa própria, onde trabalho com assessoria de imprensa e captação de fotos e vídeos para aniversários e eventos”, explica.
Mesmo hoje, formada, trabalhando e exercendo suas atividades normalmente, Wal ainda convive diariamente com o preconceito, mas de uma forma diferente. Mesmo assim e com ajuda de terapia, a jornalista entende que o problema não está nela, mas na sociedade. “Durante muito tempo tinha vergonha de sair em público ou andar na frente de multidões, mas com ajuda terapêutica, venho superando isto a cada dia e vejo que o problema não está em mim e sim nos outros, que devo me amar como sou e mostrar a cada dia para mim que não preciso provar nada para ninguém além de mim mesma”.
Como ser um aliado na luta anticapacitista?
Primeiramente, precisamos buscar conhecimento. Quando se busca novas informações e visões diferentes do padrão, os pensamentos e as atitudes têm todas as chances de mudar. “Quanto mais falamos sobre algo, mais conhecimento temos. Saber sobre o assunto vai muito além de um simples Google, é respeitar! Respeitar as diferenças e as pessoas, você não chega numa pessoa ‘normal’ e parabeniza o companheiro dela por apenas estar com ela então porquê você iria fazer isso com o companheiro de uma cadeirante? Quanto mais falarmos sobre e mais mostrarmos que não é porque a pessoa é PCD que ela é incapaz e inferior, mais comum vai ser ver PCDs usando espaços que geralmente não usam porque não têm acessibilidade ou porque não têm oportunidade”, explica Ingrid.
Precisamos entender também, enquanto sociedade, que a deficiência não é uma doença, é uma condição. Pessoas com deficiência, seja ela qual for, não são excepcionais, especiais, aleijados, incapazes ou heróis, são pessoas com algum tipo de condição que querem levar uma vida autônoma e livre, como ressalta Wal. “O mais importante de tudo, é que a pessoa com deficiência não quer ser tratada de uma maneira especial, ela quer ser tratada como todo mundo, fazer o que todo mundo faz, porque temos sim a capacidade para fazer isto. Fora que, poucas pessoas sabem, até eu mesma só vim saber disto após adulta, mas, discriminar uma pessoa por conta de sua deficiência é caso de cadeia, que pode resultar em uma pena de reclusão que vai de um a três anos mais pagamento de multa, podendo a reclusão ter o seu período aumentado dependendo das condições em que o crime foi praticado. Por fim, creio que somente com a mudança do pensamento da sociedade e com o conhecimento sobre o que é a deficiência, que será possível acabar com o preconceito e com atitudes capacitistas!”.
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