De acordo com especialistas, o rápido avanço do desmatamento na Amazônia está criando condições para o surgimento de futuras epidemias. É consenso na área científica que a perda da floresta pode levar à emergência de novos vírus e bactérias perigosos contra os quais a humanidade tem pouca defesa, o que causa epidemias e pandemias, conforme afirma a reportagem “Desmatamento acelerado na Amazônia pode levar à próxima pandemia”.
Segundo o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, lançado em maio pelo MapBiomas, em 2019, foram identificados em todo o território nacional cerca de 1.218.708 hectares de desmatamento de vegetação nativa, sendo 63% dessa área localizada na Amazônia, com 770 mil hectares. Além disso, o relatório também aponta que apenas 0,6% dessas áreas tinham permissão das autoridades ambientais, dessa forma, 99% do desmatamento no país é irregular.
Hoje, a plataforma online MapBiomas Alerta, indica que o Brasil já tem 1.257.300 hectares de área desmatada. O aumento causa preocupação e a prática favorece o surgimento e a reativação de epidemias de zoonoses: doenças capazes de serem transmitidas entre animais e seres humanos que representam mais de 60% das enfermidades transmissíveis conhecidas e 75% das doenças contagiosas recentes, de acordo com os Institutos Nacionais de Saúde.
Segundo Philip Fearnside, ecologista, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e ganhador do Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007, a relação entre o desmatamento e as zoonoses é direta. “A conexão entre o desmatamento e as doenças infecciosas é apenas mais um impacto do desmatamento, adicionado aos impactos da perda tanto da biodiversidade da Amazônia como das funções climáticas vitais da floresta que evitam o aquecimento global e reciclam a água essencial para áreas não amazônicas no Brasil (como São Paulo) e países vizinhos como a Argentina. Todos esses impactos, incluindo os impactos na saúde pública, apontam para a necessidade de mudanças radicais nas políticas públicas, a fim de retardar e, um dia, parar o desmatamento na Amazônia”, afirma em texto publicado no Amazônia Real, do qual é colunista.
O artigo Além da perda de diversidade e das mudanças climáticas: Impactos do desmatamento da Amazônia sobre doenças infecciosas e saúde pública, publicado no Anais da Academia Brasileira de Ciências, principal periódico científico brasileiro, revela que mudanças climáticas causadas pelo homem na Floresta Amazônica podem ser um dos principais fatores para futuras emergências de saúde pública. Assinado por Joel Henrique Ellwanger e outros 13 co-autores, dentre eles, Philip, o artigo propõe o estudo da importância da Floresta Amazônia no controle de zoonoses.
Logo no início, a pesquisa afirma que a Amazônia é um bioma único em muitos aspectos e é importante em diferentes esferas da vida. Por isso, segundo os pesquisadores, protegê-la é crucial para a manutenção da saúde do planeta. O texto avança e mostra que as ações humanas sob a Floresta Amazônica, mudanças climáticas, alterações nas dinâmicas de vetores, migração humana, mudanças genéticas em patógenos e baixas condições sociais e ambientais em muitos países da América Latina podem dar espaço ao que chamam de ‘tempestade perfeita’ para o surgimento e ressurgimento de doenças infecciosas no Brasil e em outros países amazônicos.
“A fauna amazônica abriga uma enorme diversidade de patógenos conhecidos, assim como muitos outros novos potenciais ou até mesmo desconhecidos. Embora boa parte desses patógenos tenha um baixo potencial infeccioso em humanos, essa abundância de microorganismos na região indica que a emergência de novas infecções vindos da floresta é uma ameaça constante à saúde humana”, explica um trecho da pesquisa.
Bem como o surgimento de novas doenças, o desmatamento também preocupa por dar forças a doenças já existentes. “O desmatamento na Amazônia tem sido associado a uma maior taxa de mordidas em humanos pelo mosquito Anopheles darlingi, um importante vetor transmissor da malária, consequentemente, a transmissão da doença está ligada ao desmatamento da Amazônia”, diz um trecho do artigo.
Em 2019, o Amazonas registrou 63.361 casos de malária. Apesar de alto, o número representa uma redução de 14% em relação ao ano de 2018, quando foram registrados mais de 73 mil casos, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM). De acordo com o Boletim Epidemiológico de Malária, dos 62 municípios amazonenses, 38 cidades apresentaram redução de incidência da doença.
Já os municípios que apresentaram aumento da incidência da doença foram 20: São Paulo de Olivença, Maraã, Uarini, Beruri, Caapiranga, Coari, Manaquiri, Nova Olinda do Norte, Nhamundá, Eirunepé, Ipixuna, Boca do Acre, Canutama, Lábrea, Pauini, Tapauá, Apuí, Humaitá, Manicoré, Novo Aripuanã.
Em entrevista do Mercadizar, Lucas Ferrante, biólogo, pesquisador e doutorando em Ecologia do Inpa, explicou como esse processo de ressurgimento de causas de doenças está associado ao desmatamento: “No caso da China, isso é muito comum por conta do consumo de animais silvestres nos mercados. O coronavírus passou de um morcego para um pangolim e, depois, ele foi transmitido para os humanos através do consumo da carne. No Brasil, temos muitos exemplos disso, não precisamos ir muito longe para ver esse fenômeno acontecer. Em Manicoré [no interior do Amazonas], por exemplo, tem aumentado exponencialmente os casos de malária por conta do desmatamento na BR-319. De 2015, quando a BR foi aberta, até 2020, observamos um aumento gradual anual de 400% na incidência de malária. Essa degradação ambiental e o maior contato com animais silvestres propiciam o surgimento destas zoonoses”, continua.
De acordo com Ferrante, a BR-319 corta um dos grandes blocos de floresta preservados na Amazônia e o conecta diretamente ao arco do desmatamento. A rodovia, que interliga a capital do Amazonas à Porto Velho, em Rondônia, será um vetor de zoonoses, principalmente para os municípios e comunidades próximas.
O relatório Análise Ambiental e Socioeconômica dos Municípios sob Influência da Rodovia BR-19, publicado pelo Instituto de Desenvolvimento da Amazônia (IDESAM) em 2018, aponta que estradas e processos de assentamento são considerados os maiores vetores de desmatamento da Amazônia. Além disso, dentre as estradas da região, o plano de reconstrução e repavimentação da BR-319, que voltou a tona em 2015, é considerado um dos casos mais críticos da atualidade.
“No histórico da Amazônia, grandes empreendimentos que causaram grandes desmatamentos ou impacto ambiental, todas as estradas estão correlacionadas ao surgimento e aumento dos surtos de malária. O desmatamento como um todo não leva apenas o coronavírus, mas doenças que podem estar estocadas nas áreas intocadas da floresta”, completa Ferrante.
Ainda de acordo com o relatório divulgado pelo IDESAM, que estudou os impactos da rodovia em 13 municípios, até 2016, foram desmatados 2.293.780 ha. O município com menor área desmatada é Beruri, com 22.260 ha, e os com maiores áreas desmatadas são Porto Velho, Lábrea e Manicoré, que juntos representam 67% do total do desmatamento acumulado na região analisada.
Assim como os outros cientistas já citados, Alessandra Nava, PhD, tem doutorado em epidemiologia pela FMVZ – Universidade de São Paulo e pesquisadora visante da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) ILMD Amazônia, também confirma que o desmatamento é um dos principais causadores de doenças infecto-contagiosas de caráter zoonótico. Segundo ela, desde o surgimento da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) em 2002, que aflingiu a China e é provocada por vírus nomeado como SARS-CoV1, diversos grupos de cientistas fizeram um monitoramento ativo em áreas do planeta com alta biodiversidade e pressão antrópica, no qual o desmatamento ocorria visando a criação de pasto e mineradoras e extração de madeira.
Ao Mercadizar, Alessandra contou como acontece uma zoonose:
“Temos a ecologia natural dos patógenos, seus reservatórios e hospedeiros e muitas das vezes há animais que possuem esses micro-organismos sem ficarem doentes. Para o ser humano ser um hospedeiro suscetível para esses patógenos, ele tem que possuir receptores que permitam a entrada do mesmo e existem processos de mutação viral que permitem isso. Essa mutação ocorre pelo contato do agente com outros animais, com o qual ele não teria convívio natural. Isso ocorre onde há diversas espécies de animais juntos de uma forma adensada, dividindo um mesmo espaço, secreções e fezes e possibilita ao agente uma mutação”, explicou.
Na história do mundo diversas pandemias e epidemias são originárias de animais. Um exemplo delas é a H1N1, ou a Gripe Suína, que teria surgido em porcos na cidade de Veracruz, no México. Em 2009 a doença matou cerca de 200 mil pessoas pelo mundo e no Brasil, até junho do mesmo ano, já tinha infectado 627 indivíduos, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
Já a doença pelo vírus Ebola (DVE) é uma zoonose que tem como seu principal reservatório o morcego. Acredita-se que o vírus foi transmitido para humanos a partir do contato com sangue ou fluidos corporais de animais infectados. Ainda segundo o Ministério da Saúde, o vírus já ocasionou inúmeros surtos na África subsaariana e tem uma taxa de letalidade que pode chegar até 90%. Entre agosto de 2018 e 2019, a doença matou mais de 2 mil pessoas na República Democrática do Congo. Além delas, a Peste bubônica, uma doença causada por uma bactéria presente em ratos pretos e que matou mais de 50 milhões de pessoas entre 1343 e 1353, também é considerada uma zoonose, como mostra a reportagem “Como as grandes pandemias mudaram o curso da história mundial”.
A origem do Covid-19, também batizado como SARS-CoV2, não é muito diferente. Para Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP) e virologista especialista em coronavírus, o SARS-CoV2 é um “parente” da SARS-CoV1 e existem duas hipóteses documentadas de como possivelmente ocorreu a contaminação do vírus com os seres humanos.
A primeira hipótese diz que o vírus entrou em contato com a espécie humana e criou estratégias para fazer a contaminação. Já a segunda afirma que ele teria vindo “pronto” de um morcego e feito a transmissão com o humano de modo mais acelerado. Além disso Eduardo afirmou que o contato com salivas e fezes de animais silvestres é o principal vetor de transmissão, contato esse que é intensificado com o desmatamento.
Para Alessandra, apesar dos grandes esforços de cientistas e instituições em monitorar áreas desmatadas e animais silvestres, com os altos índices de desmatamento a pandemia do Covid-19 já era esperada. “A solução para evitar o surgimento de novas epidemias é parar o desmatamento. Ele é o gatilho mais importante. Infelizmente, o poder público prefere não ouvir a ciência e privilegiar o lucro imediato para uma pequena e poderosa parcela que ganha muito dinheiro com desmatamento e a grilagem”, afirmou.
Apesar do recente surgimento do novo coronavírus, precisamos entender que ele, na verdade, já existia, como explica Ferrante: “Nós falamos ‘novo coronavírus’ porque esse, em específico, foi conhecido apenas agora. As zoonoses vivem na natureza, principalmente nos animais, e é justamente a degradação ambiental e o maior contato com esses animais transmissores que vai propiciar que elas contaminem os seres humanos”.
A Covid-19 nos mostrou que não estamos preparados para lidar com epidemias ou pandemias e que os governos precisam pensar em políticas ambientais a longo prazo, além de ouvir e ter a ciência como aliada. A emergência de uma zoonose e de uma posterior epidemia ou pandemia nada mais é que uma reação da natureza à devastadora ação humana. Desmatamos, queimamos e matamos a biodiversidade não só da Amazônia e da Mata Atlântica, mas de todo o mundo. Não podemos esperar sair impunes. Ao mesmo tempo em que exploramos, precisamos entender que a natureza tem sua forma de pedir socorro.
“Se surgiu uma epidemia ou pandemia, foi por conta de um desequilíbrio ambiental, onde você não tem uma capacidade de resposta rápida. Nós temos intensificado a nossa degradação ambiental e não temos resposta nenhuma nem para as pandemias e epidemias que nós já tivemos aqui. Esse é um grande problema que a Amazônia precisa se preparar para lidar. Talvez o coronavírus seja configurado como uma grande experiência para nos prepararmos para pandemias que possam surgir aqui. Nós temos todas as condições tanto de propiciar os desequilíbrios ambientais que têm aumentado em proporção que fica até difícil medir, quanto também de não estarmos preparados, principalmente do ponto de vista científico, para dar uma resposta a tempo de identificação e impedir que uma epidemia ou pandemia tome força”, conclui Lucas Ferrante.
Para Philip Fearnside, a pandemia do coronavírus funciona como um teste para a humanidade: “O único efeito positivo da pandemia de coronavírus é que ela gerou conscientização pública sobre os riscos de doenças emergentes. Pode-se esperar que isso resulte em riscos que sejam refletidos em políticas públicas futuras, como as que promovem o desmatamento na Amazônia”.
O desmatamento se mostra cada vez mais prejudicial para a saúde da humanidade e interfere diretamente no clima, na fauna e na flora e agora mais do que nunca na rotina do ser humano. Lutar pela preservação ambiental é cobrar dos gestores públicos a implementação de políticas públicas que combatam o desmatamento na Amazônia e no mundo, é promover atividades educativas que levem informações sobre o meio ambiente e a sustentabilidade, valorizar a ciência e contestar discursos que incentivam mudanças nas leis longe dos olhos da sociedade.
“Justamente porque não discutimos a questão ambiental e as crises ecológicas geradas no contexto do capitalismo, nós chegamos a essa pandemia e nos encontramos em casa. Os nossos padrões de consumo, exploração da natureza e de mundialização das mercadorias produziram essa situação. Se não mudarmos essa lógica, essa pandemia é apenas o começo. Um elemento assustador é que, se já esperávamos uma pandemia, não podemos duvidar que estamos na iminência de tornar a crise climática irreversível. E, quando isso acontecer, a sociedade vai reconhecer que o discurso científico já denunciava a possibilidade de uma crise definitiva”, analisa Luiz Fernando de Souza Santos, sociólogo e professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
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