O novo coronavírus, que se espalha rapidamente pelo mundo, começou a se manifestar na província de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, e já chegou a 185 países do mundo, aproximando-se de 2 milhões de infectados e 120 mil mortos, de acordo com as atualizações da Universidade Johns Hopkins. Estudos científicos preveem que o vírus – que tem índice de letalidade de 2% – pode infectar até 70% da população mundial. A alta prevalência esperada colocará o coronavírus no posto de uma das maiores pandemias de todos os tempos.
Fazia mais de 10 anos que o mundo não passava por uma pandemia – a última foi a de H1N1, em 2009. Hoje, o mundo deveria estar mais preparado do que antes para superar uma pandemia como essa, mas não é o que vemos. Nas cenas do século passado, algumas semelhanças com a reação à pandemia de coronavírus hoje: parte da população descrente da gravidade da doença e desinformação disseminada. O cenário é semelhante ao que já aconteceu em outros momentos da humanidade, quando doenças se espalharam pelo mundo e causaram mudanças radicais no modo como vivemos.
A pandemia de coronavírus, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março, está mudando drasticamente a organização social como conhecemos. Até agora, vimos impressionantes imagens de cidades vazias pela primeira vez e o Papa Francisco abençoando o mundo diante de uma Praça de São Pedro sem um fiel sequer. Mas os impactos podem ser muito maiores e a longo prazo.
Apesar das comparações históricas, nenhuma pandemia é 100% igual a outra. No cenário atual, temos mais incertezas do que verdades absolutas. O que vimos até agora pode ser apenas uma pequena amostra de um novo mundo. Ao longo da história, foram várias as doenças que mudaram o comportamento humano. Mas quais foram e como mudaram o funcionamento da ordem mundial?
As grandes pandemias da história
Peste Bubônica
A Peste Bubônica é uma doença causada por uma bactéria presente em ratos pretos. A transmissão ocorre através de ratos com pulgas infectadas com as bactérias causadoras da doença. No entanto, com o avanço e agravamento da doença, ela também pode ser transmitida através de espirros, saliva e contatos com as feridas dos doentes.
A doença se espalhou por toda a Europa e estima-se que ela tenha matado mais de 50 milhões de pessoas entre 1343 e 1353. Historiadores acreditam que a doença surgiu em algum lugar da Ásia Central e foi levada por italianos ao continente europeu, onde a falta de saneamento e higiene das cidades europeias, infestadas de ratos, dificultou a contenção da Peste. A doença atingiu toda a China, Oriente Médio, Rússia e chegou até a Escócia.
O escritor italiano Giovanni Boccaccio presenciou a Peste e deixou vários relatos, uma das principais fontes do acontecimento, sobre tudo que viu em Florença, Itália. Ele falou dos sintomas, da transmissão, do alto grau de contágio, mas, sobretudo, abordou o desmoronamento de ordem social com a disseminação da doença, pois muitas autoridades eram contaminadas e faleciam.
Em Decamerão, livro de contos escrito por Boccaccio e considerado um dos maiores clássicos da literatura italiana, ele descreve os sintomas da doença: “Apareciam, no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões. Em seguida o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras eram pequenas e abundantes. E, do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte, também as manchas passaram a ser mortais”.
Ele prossegue relatando que uma das maiores dificuldades era prover sepulturas aos mortos: “Para dar sepultura à grande quantidade de corpos já não era suficiente a terra sagrada junto às Igrejas; por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios; punham-se nessas Igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios”.
A Peste aterrorizou a Europa e matou cerca de um terço da população, mas historiadores dizem que ela pode ter ajudado a região a se desenvolver. A alta taxa de mortalidade causou escassez de mão de obra para os proprietários de terras, o que fez com que o sistema feudal desmoronasse. Isso levou a Europa Ocidental a desenvolver uma nova e moderna economia, baseada na comercialização e no dinheiro.
Vale mencionar também que a noção de quarentena surgiu nesse período da história mundial: a então República de Veneza, cujo território hoje pertence à Itália, foi bastante atingida pela epidemia e um membro do clero sugeriu que se adotasse a restrição de circulação livre de pessoas, especialmente as que chegavam em barcos e navios. A escolha de 40 dias obedeceu a critérios bíblicos: algumas passagens do Velho Testamento mencionam esse período de isolamento para surtos como a lepra.
Varíola
A doença atormentou a humanidade por mais de três mil anos. Registros dão conta que grandes personalidades históricas como o faraó egípcio Ramsés II, a rainha Maria II, da Inglaterra, e o rei Luís XV, da França, sofreram com a varíola.
Ela está erradicada do planeta desde 1980 graças a uma grande campanha de vacinação. No entanto, entre 1896 e o ano da erradicação, cerca de 300 milhões de pessoas morreram por conta do vírus.
No Brasil, o uso da vacina contra a varíola foi declarado obrigatório para crianças em 1837 e para adultos em 1846. Infelizmente, essa resolução não era cumprida, até porque a fabricação do medicamento em escala industrial no Rio de Janeiro só começou em 1884.
Em 1904, Oswaldo Cruz, médico contratado pelo governo para combater doenças, impôs a vacinação obrigatória contra varíola para todos os brasileiros com mais de seis meses de idade. Políticos, militares de oposição e a própria população se opuseram à vacina. A imprensa, responsável por informar, dedicava charges cruéis ironizando a eficácia do remédio e, assim, teve papel fundamental na Revolta da Vacina.
“Falando especificamente da Revolta da Vacina, parte da grande imprensa teve um importante papel para o acontecer do movimento. Segundo a historiadora Aline Salgado, os jornais de maior circulação se posicionaram ora contra e ora a favor do movimento. Aqueles que se posicionaram a favor atuaram no sentido de promover a ‘vulgarização do conhecimento científico’, aqui entendido como sendo uma espécie de ‘informantes’ das classes populares”, afirma o historiador Márcio Silva.
Cólera
A primeira pandemia de cólera aconteceu em 1817 e matou centenas de milhares de pessoas. Desde então, a bactéria vibrio cholerae sofre diversas mutações e causa novos ciclos epidêmicos de tempos em tempos e, por isso, ainda é considerada uma pandemia.
A transmissão acontece a partir do consumo de água ou alimentos contaminados e é mais comum em países subdesenvolvidos. Um dos países mais atingidos pela doença foi o Haiti, em 2010. O Brasil já teve vários surtos da doença, principalmente em áreas mais pobres do Nordeste.
A cólera ainda não foi erradicada. Apesar de existir uma vacina, ela não é 100% eficaz, e o tratamento é feito à base de antibióticos. Segundo a OMS, 100 a 120 mil pessoas morrem todos os anos devido a doença.
Gripe Espanhola
Conhecida como “a mãe de todas as pandemias”, a Gripe Espanhola, apesar do nome, teve seus primeiros casos identificados nos Estados Unidos entre soldados do Exército Americano, em 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial – com quem dividiu as atenções e as páginas de jornais. Acredita-se que ela tenha matado entre 50 e 100 milhões de pessoas pelo mundo até 1919 e que até 40% da população mundial tenha sido infectada. Para termos uma noção de quantidade, a guerra fez menos da metade de vítimas, cerca de 30 milhões de pessoas. Apesar das estimativas, o número não é preciso pois, àquela época, as informações eram extremamente limitadas, já que não era de interesse das nações divulgar que havia uma doença contagiosa atingindo seus soldados em plena guerra.
Quando a Gripe chegou ao Brasil, à bordo do navio inglês Demerara, transatlântico que desembarcou passageiros infectados em Salvador, Recife e Rio de Janeiro, em 1918, o país não tinha um Ministério da Saúde e ainda se estudava a possibilidade de criação de um órgão que que concentrasse os setores de saúde pública. Em 1920, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, que equivaleria à pasta de hoje.
No Brasil, também não há uma contabilização exata das vítimas, mas estima-se que cerca de 35 mil pessoas tenham morrido por conta da doença – 15 mil só no Rio de Janeiro, capital do país. De acordo com Márcio Silva, a Gripe Espanhola atingiu a todas as classes sociais. Inclusive, o então Presidente da República, Rodrigues Alves, morreu da doença, em 1919. “A epidemia da ‘Influenza Espanhola’ teve como característica principal o ataque a todos os segmentos sociais. Em outras palavras, ninguém foi poupado pela pandemia que chegou no Brasil via navegação marítima pelo Sudeste e Sul se espraiando para outras regiões do país durante o biênio 1918-1919”.
À época, os brasileiros não demonstraram uma preocupação imediata. Os jornais brasileiros, antes de o vírus chegar por aqui, ignoravam e davam pouco espaço à informação nos impressos. Depois, passaram a cobrar as autoridades competentes sobre as medidas que seriam tomadas na área de saúde pública.
As semelhanças da Gripe Espanhola com o coronavírus vão muito além dos sintomas. Assim como vemos hoje com a Covid-19, a população não tinha anticorpos para a doença e não havia tratamentos seguros. De um lado, a medicina baseada na ciência buscava tratamentos e, de outro, a “medicina popular” sugeria remédios caseiros. Em São Paulo, por exemplo, a população utilizou um remédio caseiro feito com cachaça, limão e mel. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi dessa receita “terapêutica” que nasceu a caipirinha. Uma das principais recomendações era tomar soluções de sal de quinino, remédio indicado para o tratamento da malária. Coincidentemente, hoje, mesmo que sem uma comprovação científica, a grande aposta era na cloroquina, que possui a mesma substância na composição. Segundo a OMS, ainda não há “evidências empíricas” sobre a eficácia do medicamento. No Brasil, a cloroquina chegou a ser utilizada em pesquisas através do tratamento de pacientes com Covid-19, mas as medidas foram interrompidas por conta dos efeitos colaterais.
A imprensa publicava através dos jornais impressos, meio de comunicação mais popular, dicas e conselhos de como a população poderia se cuidar.
“Nesse cenário quase apocalíptico e sem vacina, as pessoas buscavam alternativas como seguir a profilaxia preventiva veiculada por jornais da época como o Gazeta da Tarde, mencionado em ‘Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos Jornais de Manaus (1918-1919)’, dissertação da historiadora Rosineide Gama, que entre algumas indicações dizia: ‘3) cohibir-se de beber fora de casa; 4) Fugir dos agrupamentos; 5) evitar levar mãos a boca, nariz e ouvidos; 8) desinfectar as mãos o maior número de vezes possível, principalmente antes e depois das refeições’. Algumas recomendações acima nos fazem lembrar dos cuidados referentes a COVID-19 que estamos enfrentando atualmente. Só para citar um exemplo, o fato de evitar aglomerações também ter sido recomendado à época alterou significativamente o viver das pessoas ao limitar seu direito de ir e vir”, afirma Silva.
Gripe Suína (H1N1)
Chegamos ao século 21, caracterizado pelo processo de globalização da economia e, principalmente, da informação. Potencializadas pela Revolução Digital, as redes de comunicação deste novo século, cada vez mais rápidas e eficientes, permitem a comunicação e o acesso rápido à informação em qualquer parte do mundo. Mesmo com a Internet e as tecnologias a todo vapor, o mundo foi vítima de mais uma pandemia.
Foram quatro décadas sem enfrentar uma pandemia quando, em março de 2009, o governo mexicano foi informado do aumento do número de jovens adultos que sofriam de uma doença respiratória aguda. Em pouco tempo, foram registrados casos nos Estados Unidos.
Conhecida como Gripe Suína, o vírus H1N1 foi o primeiro causador de uma pandemia no século 21. O vírus surgiu em porcos na cidade de Veracruz, no México, e rapidamente se espalhou pelo mundo, matando mais de 200 mil pessoas, segundo relatório mais recente da OMS. Em 11 de junho, a OMS anunciou a gripe suína como uma pandemia, cujo fim só seria anunciado 14 meses depois. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em maio do mesmo ano e, no fim de junho, 627 já estavam infectadas no país, segundo dados do Ministério da Saúde.
Um fator fundamental para o baixo índice de pessoas infectadas (principalmente quando comparada a outras pandemias) foi o fato de, em 2009, haver medicamentos antivirais capazes de combater aquele vírus. Outro elemento que contribuiu para controlar a disseminação do vírus H1N1 foi o desenvolvimento de uma vacina no mesmo ano, o que foi possível porque já havia uma vacina contra o influenza, resultado do mapeamento do vírus da gripe espanhola. Essa vacina teve um papel importante também na proteção da população contra novos subtipos do H1N1.
Em entrevista à BBC, Benedito da Fonseca, infectologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, afirmou que a pandemia de 2009 deixou importantes lições à humanidade. A principal delas foi como lidar com epidemias de gripe nos tempos atuais. Segundo Fonseca, isso permitiu conter a disseminação de outros vírus influenza que causaram epidemias localizadas na Ásia e nunca se espalharam pelo mundo, por exemplo.
No entanto, ainda de acordo com o infectologista, o problema é que a pandemia que vivemos agora é causada por um vírus totalmente novo e diferente e que ninguém, nem mesmo a ciência mais avançada, ainda sabe muito bem como lidar e conter.
A pesquisa de uma vacina contra o Sars-Cov-2 vem avançando rapidamente, basicamente ao passo da propagação da doença. Segundo relatório da OMS, já há mais de 70 versões em desenvolvimento e três delas já estão em fase de testes em humanos, mas ainda é preciso garantir que elas sejam eficazes e seguras à saúde. Mesmo que uma dessas vacinas se prove eficaz, será necessário encontrar uma forma de fabricá-la em massa. Por isso, as previsões mais realistas apontam que essa vacina não estará pronta para ser aplicada até meados de 2021.
Até lá, é necessário seguir as recomendações dos órgãos competentes na área de saúde (Ministério da Saúde e OMS), manter-se sempre informado através de fontes confiáveis e, sobretudo, incentivar a produção de ciência e pesquisas na área. Afinal, conforme pudemos analisar ao longo da história da humanidade, a ciência pode nos salvar.
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