Ariel Bentes e Nayá Costa; 07/05/2020 às 17:00

A ciência como aliada

Em um cenário de dúvidas e medo, dar voz à ciência é a melhor das escolhas

Desde a sua origem, o homem tem a necessidade natural de obter conhecimento sobre os objetos que o cercam, pois sua sobrevivência depende disso. Historicamente, na Grécia Antiga já se pensava sobre a ciência. Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), por exemplo, escreveu sobre a origem da vida, assim como Francis Bacon (1561-1626), filósofo inglês que foi o responsável pela base da ciência moderna. 

Há anos a ciência atua como nossa aliada. É ela a principal responsável pelas mudanças sociais que vivemos, pois nos alerta sobre possíveis problemas que venhamos a enfrentar. A frase de Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, resume significativamente sua importância: “Apenas uma sociedade que é versada na ciência pode escolher qual vai ser o seu destino de forma responsável”

Ao redor do mundo, universidades e outras instituições de pesquisa são financiadas majoritariamente com recursos públicos. Nos Estados Unidos, por exemplo, 60% do dinheiro para a pesquisa vêm dessa fonte, como mostram os dados da ‘National Science Foundation’ (NSF) com a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). 

Arte: Thais H. Santos, Jornal USP

De maneira similar, na Europa o governo também é a principal fonte de recursos das instituições, de acordo com os dados do Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), correspondendo, em 2015, por 77% da receita total.

Arte: Thais H. Santos, Jornal USP

Já no Canadá, o dinheiro público representa de 55% a 60% do financiamento das universidades, enquanto na China, de 40% a 45%. Tais dados foram apontados por Danilo de Melo Costa em sua tese de doutorado, que comparou o financiamento público de ambos países com o Brasil.

Nos últimos anos os cortes nos orçamentos na ciência e educação no Brasil tem seguido um caminho oposto dos países citados. Em 2019, o governo federal determinou o congelamento de R$ 5,8 bilhões previstos para a educação, sendo R$ 1,7 bilhão retirados das universidades e institutos federais. Tais dados foram obtidos pelo Ministério da Educação (MEC) e do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) do governo, que constatam a queda em investimentos na área.

Em maio do último ano a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação do MEC responsável por estimular a pós-graduação no país, suspendeu a concessão de novas bolsas de mestrado e doutorado. Além disso, no mesmo ano, o jornal Metrópoles identificou, via Lei de acesso à informação, que a Capes contabilizou 24.612 mil processos que pedem o reembolso parcial ou total das bolsas concedidas aos estudantes do Ciências Sem Fronteiras. Em nota ao site, o MEC informou que parte desses processos já foram encerrados mas não disse quantos. 

Com as inúmeras reduções, os bolsistas promoveram um manifesto em relação aos atos contra a ciência. O texto, lançado em setembro de 2019, se inicia com a frase “Nós, bolsistas do Programa Ciência sem Fronteiras, nos juntamos à comunidade acadêmica brasileira e internacional para demonstrar nossa preocupação com a ciência nacional e com o legado da produção de conhecimento no país”. 

A mais recente ação contra a ciência no Brasil causou indignação e foi alvo de duras críticas. Publicada no dia 18 de março, sem qualquer consulta ou aviso prévio à comunidade acadêmica, a Portaria 34 faz alterações cruciais no novo regramento – como a alteração no oferecimento de bolsas de mestrado – lançado um mês atrás pela própria Capes. Logo após o anúncio da portaria, 49 coordenadores de área de Ciências Biológicas 1 da instituição enviaram uma carta conjunta ao presidente da fundação, Benedito Aguiar Neto, no dia 20, reivindicando a revogação da mesma e pedindo mais transparência no processo.

No início de abril deste ano, a Folha de São Paulo revelou  que um novo regramento feito pela Capes em março era inconstitucional e havia provocado o corte de cerca de 6.000 bolsas de pesquisa. A notícia, que surgiu em meio a eclosão do novo coronavírus, promoveu inquietação e sofreu um processo do Ministério Público Federal, que foi contrário à decisão. Em entrevista ao jornal, a pró-reitora da Universidade Federal de Santa Catarina, Cristiane Derani, lamenta a decisão tomada. “Enquanto o coronavírus está matando pessoas, o governo Bolsonaro está matando a ciência brasileira”, diz Cristiane. 

Para o reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Pedro Rodrigues Curi Hallal, o lamento se repete. “(…) investimento em ciência e tecnologia jamais deveria ser cortado, o momento é de uma falta de sensibilidade. Nenhum país do mundo sai de crise sem investir em ciência e tecnologia”, disse para o site Sul21.

A Universidade Federal do Amazonas (UFAM) não ficou de fora dos cortes promovidos pela Capes. Segundo o Sindicato dos Docentes da Ufam (Adua), no dia 14 de março foram cortadas 32 bolsas de mestrado e doutorado da Ufam. Desse total, 27 são oriundas da Capes, sendo 10 de doutorado e 17 de mestrado. 

Academia contra o vírus

Nos últimos anos, apesar da participação ativa dos governos mundiais em prol da educação, ciência e tecnologia, as políticas de prevenção e controle foram deixadas em segundo plano. Assim, os países se prepararam para enfrentar seus inimigos em uma suposta guerra, sem se atentar para o que a comunidade científica afirmava ser o verdadeiro inimigo global.

Durante um TED em 2015, Bill Gates questiona tal escolha e comenta que investimentos precisam ser feitos nas políticas de controle e no sistema de saúde. “Investimos muito em estratégias nucleares, mas investimos muito pouco em um sistema que detenha uma epidemia”, disse Bill.

Na luta contra o novo coronavírus, diversas universidades de todo o mundo tem se destacado por suas pesquisas e projetos científicos. Um dos maiores feitos é da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, que exibe em seu portal o número de casos confirmados, de mortes e de sobreviventes em todos os países do mundo e passou a ser usado por veículos de comunicação e até governos para acompanhar a evolução da pandemia. 

A Universidade Fudan, em Xangai, foi a pioneira no estudo sobre os níveis de anticorpos em pacientes infectados. Isto é, eles analisaram os pacientes curados e constataram que nem todos produziram anticorpos para combater o invasor. O objetivo do estudo é descobrir se essas pessoas podem ser reinfectadas ou não, para poder pensar em uma vacina eficaz, de fato. 

Além dela, cientistas da Universidade de Utrecht, localizada na cidade de Utreque nos Países Baixos, contaram na última segunda-feira, dia 4 de abril, que descobriram um anticorpo que neutraliza o novo coronavírus. Segundo o estudo realizado pela equipe e publicado na revista Nature Communications, a neutralização ocorreu por meio de células in vitro e o anticorpo usado no trabalho é totalmente humano. 

No Brasil, diversas universidades trabalham não só no estudo sobre o novo vírus, mas também na produção de produtos de higiene que o combatem, como o álcool em gel. Em relação às pesquisas, uma das iniciativas promissoras vem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), através do projeto Rede Vírus. Promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), um grupo de pesquisadores está desenvolvendo um novo teste de diagnóstico para a doença, que tem como grande vantagem a aplicabilidade em forma massiva. 

Os pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) também fizeram um trabalho promissor. A partir de amostras de dois pacientes diagnosticados com a doença no Hospital Israelita Albert Einstein, eles isolaram e cultivaram em laboratório o vírus Covid-19. A meta é distribuir amostras para grupos de pesquisa e laboratórios clínicos públicos e privados em todo o país, para assim, ampliar a capacidade de realização de testes diagnósticos e no avanço dos estudos sobre como a doença é causada e se propaga. Além da pesquisa, também foi criada pelo Instituto uma plataforma interativa, que reúne dados epistemológicos do vírus. 

Também na USP, na Escola Politécnica da universidade, foi desenvolvido um respirador de baixo custo. Um respirador convencional custa em média R$ 15 mil mas o que foi produzido pelos cientistas possui o valor de mil reais. Entre os dias 17 e 19 de abril, o equipamento foi testado em quatro pacientes do Instituto do Coração e foi aprovado. Agora os cientistas aguardam a liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

No nordeste, os cientistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) importaram dos Estados Unidos e da China dois tipos de testes para identificação do vírus e oferecem o serviço a qualquer hospital particular que queira fazer a amostra. O exame tem duração de três horas e torna possível a análise de 90 amostras, diminuindo assim a demora no resultado.

Já no Paraná, onde os casos tem crescido gradativamente, os pesquisadores da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) criaram trajes especiais e de baixo custo para atuar no combate ao novo coronavírus. As roupas seriam utilizadas por policiais e bombeiros que tenham que buscar pessoas em óbito nas suas residências ou em hospitais. 

Já a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Nacional de Brasília (UNB) seguem uma linha semelhante no auxílio contra o vírus. Elas têm elaborado protocolos para o atendimento de infectados, além de ações estratégicas e planos de contingência. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também foi criado um grupo de trabalho multidisciplinar para ações de orientação, diagnóstico e tratamento de possíveis casos de Covid-19. O objetivo é desenvolver um novo exame de diagnóstico que seja mais barato e rápido. Além disso, através de uma inteligência artificial, o grupo é capaz de monitorar informações relacionadas à chegada do vírus com maior antecedência. 

No Amazonas, estado que vive uma situação delicada perante ao colapso do sistema de saúde, os investimentos na ciência têm crescido. A Universidade Federal do Amazonas vem realizando diversas ações de enfrentamento ao novo vírus, o que levou o Ministério da Educação a liberar um recurso de 500 mil reais para a ampliação e consolidação de projetos.  “Neste momento é muito importante o trabalho de todos e, por meio desse repasse, o Ministério reconhece o trabalho que a Universidade Federal do Amazonas está realizando no combate à pandemia”, declara o Reitor Sylvio Puga. 

Um dos primeiros feitos da universidade partiu do Departamento de Matemática, onde a ciência de sistemas e a análise matemática foram os aliados que o professor de álgebra Wilhelm Alexander Steinmetz utilizou para calcular a incidência dos casos de coronavírus em Manaus.

“Quando ficou evidente como esta nova doença sobrecarregou sistemas de saúde de países desenvolvidos, como o da Itália, resolvi escrever um texto com um cálculo didático, que todo mundo poderia seguir, para mostrar em que direção poderíamos estar nos movendo aqui em Manaus”, disse o professor em entrevista ao Portal Mercadizar.

O texto foi publicado na página do Departamento de Matemática da Ufam no dia 18 de março. Após a publicação, o professor Wilhelm, em parceria com Sandro Bitar, deu início à uma modelagem matemática da possível propagação do vírus na cidade.

Naquela época o cálculo mostrava que os casos de infectados em Manaus dobravam a cada 6 dias. Assim, se hoje há um caso, em 6 dias haverá 2, em 12 dias haverá 4, em 18 dias haverá 8 casos. “Raramente as curvas exponenciais saem dos livros do ensino médio e se tornam tão ameaçadoras na vida real”, comenta Wilhelm sobre o cálculo. 

A universidade hoje tem interesse em produzir equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras. Além das pesquisas, 1500 litros de álcool foram produzido por pesquisadores do Departamento de Química junto ao Comitê de Enfrentamento ao Coronavírus da UFAM e através de doações de empresas locais. O álcool foi destinado aos hospitais e UBS da cidade, que enfrentam o colapso. 

Buscando atender aos profissionais que estão na linha de frente contra o novo coronavírus, a UFAM, em parceria com a Fundação de Vigilância Sanitária (FVS), deu início a realização de testes rápidos nos profissionais de saúde que apresentarem sintomas gripais leves. Para realizar o teste, é necessário agendar online a consulta através do site da fundação. 

Apesar da ciência progredir em Manaus, foi também na cidade onde os pesquisadores da Fiocruz sofreram ameaças e perseguições após o teste da cloroquina em pacientes com Covid-19. O estudo foi realizado ainda em março com pacientes em estado grave, a maioria na UTI, no Hospital Delphina Aziz. O trabalho, que foi conduzido por 70 pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical, Universidade do Estado do Amazonas, Universidade de São Paulo e a Fiocruz, ganhou repercussão nos Estados Unidos depois que virou reportagem no jornal The New York Times. Além dos ataques on-line, a equipe também recebeu duras críticas do deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PSL, que cobrou investigação do caso.

Após resultados da pesquisa que mostraram que uma alta dosagem é muito tóxica para pacientes com a Covid-19 em estado grave, o Governo do Amazonas suspendeu seu uso em contaminados pela doença. A pesquisa, apesar de criticada por membros de fora da comunidade científica, serviu como embasamento para o Ministério da Saúde durante o tratamento no país.

Para Karime Bentes, chefe do Departamento de Química da UFAM, a ciência sempre teve papel primordial no desenvolvimento humano. “Infelizmente hoje enfrentamos um embate de grupos que buscam subestimar a importância da ciência, por motivos que os livros de história irão muito bem explicar. Todos aqui buscam a preservação da vida”, completa.

A busca por vacinas 

Diante do cenário de pandemia em todos os continentes, os pesquisadores têm corrido em busca de uma possível cura. Segundo a London School of Hygiene & Tropical Medicine, faculdade de Medicina britânica, existem mais de 100 projetos de vacina contra a Covid-19 registrados e catalogados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no mundo. Os estudos da faculdade indicam 110 vacinas em fase de desenvolvimento “pré-clínica” e oito projetos em etapa de testes clínicos de fase I em seres humanos. 

De acordo com a Folha de São Paulo, vale destacar quatro vacinas contra o coronavírus que já foram testadas em seres humanos. A vacina RNA Americana foi a primeira a realizar esse procedimento ainda no mês de março na fase I, que mediu somente a segurança. Já o projeto chinês liderado pela empresa CanSino, que iniciou logo após os testes americanos, está em uma fase ainda mais avançada, com testes clínicos de fase I e de fase II, no qual é investigada a eficácia do produto. 

Além delas, temos a imunização americana com DNA da empresa Inovio Pharmaceuticals e as vacinas do Instituto Médico Genoimune de Shenzhen na China, feitas com células geneticamente modificadas. Já na Alemanha, as empresas BioNTech e Pfizer já testaram a vacina em indivíduos do país e iniciaram o procedimento também nos Estados Unidos com o objetivo de vacinar cerca de 360 voluntários na primeira etapa do estudo.

A Universidade de Oxford, na Inglaterra, também tem tido um importante papel frente ao vírus. De acordo com a especialista em vacinas Sarah Gilbert, professora da universidade, uma vacina contra o novo coronavírus pode estar pronta para ser lançada em setembro. Sarah lidera uma equipe de cientistas que tenta desenvolver uma solução para a pandemia e iniciará o teste em humanos nas próximas semanas. 

Com isso, voluntários no mundo todo têm sido convocados para testar a efetividade das vacinas. A ONG americana 1 Day Sooner, por exemplo, já possui mais de 14 mil indivíduos de 102 países que se cadastraram no site, entre eles cerca de 4 mil brasileiros. A iniciativa do 1 Day Sooner pretende testar diversos tipos de vacinas ao mesmo tempo, buscando acelerar o desenvolvimento e progredir as pesquisas relacionadas à cura.

A comunidade científica, entre médicos, químicos e biólogos, estão em uma busca incessante por uma vacina contra o coronavírus, mas segundo Gustavo Cabral, pós doutor pela Universidade de Oxford e pesquisador do Instituto do Coração da USP, dificilmente uma vacina estará pronta para ser comercializada em larga escala antes do fim de 2021. “Não é somente em relação ao Brasil. Acho que esse ano não vai ter uma vacina disponível em qualquer lugar do mundo. (…) É preciso seguir todos os protocolos e normas, pois isso não é brincadeira não. Isso é vida”, disse ele em entrevista ao programa Fantástico da TV Globo, que foi ao ar no dia 3 de maio. 

Enquanto muitos governantes ainda minimizam a Covid-19, há anos especialistas já previam uma nova pandemia. Como mostra o documentário Explicando: coronavírus, lançado no fim do mês de abril pela Netflix, somente uma contenção antecipada poderia ter diminuído o número de infectados e para que o mundo não cometa os mesmos erros no futuro é preciso que os chefes de Estado, valorizem, invistam e deem voz a pesquisa científica constantemente, pois na luta contra qualquer vírus a única arma para combatê-los é a ciência. 

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