Há mais de três décadas, a Lei Rouanet é a principal ferramenta de fomento à cultura no Brasil. Sua aplicação, no entanto, é um constante alvo de polêmicas, desinformação e fake news. Por isso, o Mercadizar Explica desta semana vai te ajudar a entender um pouco mais sobre o que é, qual a importância e como funciona a Lei de Incentivo à cultura ou popularmente conhecida como Lei Rouanet.
O que é a Lei Rouanet?
Conhecida como Lei Rouanet por uma homenagem ao ex-secretário de cultura Sérgio Paulo Rouanet, a Lei Federal de Incentivo à Cultura foi instituída em 23 de dezembro de 1991, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor. De acordo com o documento, após ter um projeto aprovado, produtores são autorizados a buscarem investimento privado para projetos culturais, cujo valor investido na proposta é abatido no Imposto de Renda das empresas. Trata-se de um mecanismo de incentivo fiscal que estimula o apoio financeiro do setor privado ao setor cultural.
Em fevereiro de 2022, o Governo Federal, por meio da Secretaria Especial da Cultura, estabeleceu uma instrução normativa que reduzia o teto de aplicação da Lei Rouanet de um milhão para quinhentos mil. Essa é mais uma das várias atualizações realizadas na Lei em quatro anos. A primeira foi feita em 2019, quando o valor máximo por projeto incentivado foi reduzido de 60 milhões para um milhão.
Na prática, essa nova regra determina que uma empresa com lucro de milhões pode investir até quinhentos mil em projetos culturais. Esse valor só varia para os projetos considerados de tipicidade singular e específica, como desfiles festivos, exposições de artes e festivais, ações de capacitação cultural, inclusão da pessoa com deficiência, óperas, projetos de internacionalização da cultura brasileira, teatro musical e outros. Nesses casos, o valor máximo para investimento fica entre R$ 4 milhões e R$ 6 milhões. Além disso, a nova atualização também impõe um teto em relação aos recursos repassados para cada função desempenhada e atividade do projeto. Por exemplo, o novo valor para aluguel de teatros é de até R$ 10 mil, enquanto o pagamento para artistas chega até R$ 3 mil.
Em entrevista ao Mercadizar, Vitor Rocha, multiartita negro e macumbeiro da periferia de Manaus que desenvolve trabalhos como produtor cultural e pesquisador, nos contou como seus projetos culturais foram impactados pela redução de verbas e incentivos ao setor.
“Se em anos anteriores eu poderia me programar (administrativamente e financeiramente) sabendo de um quantitativo mínimo de editais e outras iniciativas a serem realizadas durante o ano, hoje eu já não consigo mais. Se meu trabalho dependesse exclusivamente do incentivo público, esse ano eu teria realizado apenas um trabalho, no início do ano. Isso porque foi de verba de caráter emergencial de 2021, que atrasou nove meses para execução do meu projeto. Vamos iniciar o segundo semestre e ainda não posso prospectar nenhum incentivo governamental a chegar.
Para a gestão federal, a cultura deve operar com limites e restrições para cada uma de suas atividades. Esse pensamento impacta não somente a execução do projeto, como também reduz o alcance dessa entrega. Por outro lado, dados de um estudo realizado pelo extinto Ministério da Cultura revelaram que a cada um real captado e executado por meio da Lei Rouanet – ou seja, um real renunciado do imposto, em média R$ 1,59 – retornou para a economia local. Dessa forma, fica comprovado que a economia criativa estimulada pela Lei de incentivo à cultura gerou mais riquezas aos cofres públicos do que custos.
Em relação ao cenário cultural da Região Norte, Victor afirma que, apesar das dificuldade, a sua visão tem sido “A melhor possível. Parece que a classe artística periférica têm ganhado cada vez mais confiança no seu trabalho, na medida em que tem seus pares chegando em lugares de notoriedade, as artes da cena circulando em premiações lá de baixo, e o hip-hop nortista alcançando números expressivos de alcance. A gente tem se movimentado muito, estamos fazendo barulho. No entanto, o cenário político e econômico realiza uma força contrária ao nosso movimento, deixando tudo mais pesado e lento. Às vezes, parece impossível realizar qualquer coisa. Só que eles esquecem que o curumim da amazônia já tá desde cedo abrindo caminho no terçado.”
Como funciona a Lei Rouanet?
A Lei Rouanet contempla uma diversidade de atividades de diferentes segmentos, desde projetos voltados para a música popular e erudita, eventos literários e patrimônio imaterial até moda, games e outras propostas. Por exemplo, por meio da Lei Rouanet é possível elaborar produtos culturais como CDs, livros e DVDs. O principal requisito para a submissão de um projeto na Lei Rouanet é que seja comprovada sua relevância e seu impacto social.
De acordo com o site da Lei de Incentivo à Cultura, na plataforma do Governo Federal, os projetos submetidos para aplicação na Lei Rouanet acontecem pelo Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), e os autores podem ser tanto pessoas físicas como jurídicas. Após a etapa de cadastro no Salic, o Ministério do Turismo fica encarregado de fazer a análise e aprovar a captação de recursos. Após isso, o proponente deve captar 10% do valor aprovado para que o projeto seja encaminhado para a análise técnica da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), para somente assim iniciar a execução do projeto.
Em relação à prestação de contas, é obrigatório que ao final de cada projeto aplicado pela Lei Rouanet seja apresentada toda a documentação reunida em relação às despesas, como comprovantes de pagamento e recibos. Além disso, também é preciso apresentar fotos, vídeos, materiais de divulgação e notícias que ajudem a comprovar que a execução saiu conforme o previsto. Segundo estabelecido no Art. 3º da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, os projetos culturais submetidos à Lei de incentivo à cultura devem atender, pelo menos, um dos objetivos listados para terem recursos captados e canalizados em sua função:
- Incentivar a formação artística e cultural
- Fomentar a produção cultural e artística
- Preservar e difundir o patrimônio artístico, cultural e histórico
- Estimular o conhecimento de bens e valores culturais
- Apoiar outras atividades culturais e artísticas
Além disso, como uma das regras da Lei Rouanet é a criação de um projeto cultural, ele deve seguir uma estrutura bem definida que atenda os seguintes pontos:
- Produto cultural.
- Ficha técnica.
- Contrapartidas sociais.
- Currículo do proponente.
- Justificativa do projeto.
- Cronograma.
- Orçamento.
- Política de distribuição.
- Ações de divulgação.
Entendendo a Diferença da Lei de Incentivo à Cultura e a Lei de Licitação
Recentemente, uma polêmica envolvendo o cantor sertanejo Zé Neto, da dupla Zé Neto e Cristiano, e a cantora Anitta trouxe para o centro da discussão a questão da origem do dinheiro da Lei Rouanet e os cachês pagos pelas prefeituras municipais. Tudo começou quando o cantor, durante um show em Mato Grosso, mandou indiretas para a cantora Anitta e direcionou críticas à legislação, chegando a mencionar que ele e seu parceiro não faziam parte do grupo de artistas que precisam da Lei Rouanet para trabalhar.
Nas redes sociais, além das críticas ao seu posicionamento, começaram surgir dúvidas em relação à origem do dinheiro que é utilizado para pagamentos feitos pelos projetos aprovados pela Lei Rouanet e os cachês da prefeitura. A repercussão foi tão grande que abriu precedentes para uma série de investigações que estão sendo realizadas envolvendo Ministérios Públicos e que estão sendo chamadas de “CPI do Sertanejo”.
Já em relação à diferença entre o cachê pago pelas prefeituras para os artistas e o dinheiro direcionado da isenção fiscal, é preciso ter em mente que, pela Lei Rouanet, a origem do dinheiro vem da isenção de impostos, ou seja, do abatimento fiscal que seria tributado no imposto de renda das empresas ou patrocinadores. Além disso, é possível que, pela Lei de incentivo à Cultura, as entradas dos eventos sejam feitas de forma gratuita ou paga, mas, no segundo caso, esse dinheiro não retorna à administração pública de forma direta, mas possui a possibilidade de girar na economia e retornar aos cofres públicos de maneiras indiretas.
Por outro lado, na contratação de artistas feita pelas prefeituras, que é uma modalidade prevista na Lei de Licitações, a contratação do artista é realizada por meio de verbas públicas. No entanto, nesse caso, se o show for capitalizado, o dinheiro retorna aos cofres públicos de forma direta, sem precisar passar por outros processos.
Afinal, qual a importância da Lei Rouanet?
No aspecto financeiro, a Lei Rouanet cumpre um papel fundamental para o mercado cultural, pois garante que o dinheiro de impostos de empresas privadas sejam revestidos para incentivos na área cultural. Sem dúvidas, sem o aparato da Lei Rouanet, muitos projetos culturais nunca teriam saído do papel.
Além disso, somos um país que possui níveis de desigualdade elevados. Segundo o relatório sobre a riqueza global do banco Credit Suisse de 2020, o Brasil não só continua sendo um dos países mais desiguais do mundo, como está piorando. E, em um cenário como este, leis de incentivo a iniciativas culturais são imprescindíveis, pois criam oportunidades, movimentam a economia e possibilitam salvar vidas por meio do resgate social feito pela cultura.
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