Thaís Andrade; 30/08/2022 às 16:00

Jovens pesquisadores do Amazonas lançam teclado digital com caracteres de mais de 40 línguas indígenas

Software Linklado dá suporte para a escrita e contribui para a transmissão e sobrevivência das línguas nativas da Amazônia

Diversas línguas indígenas da Amazônia foram excluídas da revolução digital por terem em seu vocabulário caracteres especiais, como ʉ, ɨ, ñ, ç̀ ou g̃, por exemplo, além da combinação de diacríticos (sinais gráficos `,´, ~, ^, ¨), que não estão presentes na maioria dos teclados físicos e virtuais.

Isso faz com que os indígenas se comuniquem por meio de áudio ou usando substitutos para esses caracteres, o que representa uma ameaça à continuidade das línguas nativas.

Para resolver esse desafio, um grupo de jovens pesquisadores do Amazonas lançou o teclado digital Linklado, software que reúne caracteres especiais e diacríticos de mais de 40 línguas indígenas da Amazônia. Os idealizadores são o estudante da Universidade de Stanford (EUA), Samuel Benzecry, e o estudante do ensino médio em Manaus, Juliano Portela. Juntos, eles desenharam o layout e desenvolveram o protótipo do teclado digital para Windows e Android.

Samuel é um dos jovens selecionados pela rede Ashoka, organização mundial de empreendedorismo social que apoia o fortalecimento de habilidades para transformações que sejam positivas para a sociedade de maneira geral.

Teclado adaptado

De acordo com Samuel, o teclado Linklado é inédito. “Aparelhos Android podem ser postos na língua Kaingang ou Nheengatu, mas isso não resolve o problema de línguas que utilizam sinais diacríticos como ü̃, muito usado na Tikuna, que é a língua indígena mais falada no Brasil”, exemplifica.

O estudante acrescenta que já existiam teclados adaptados para línguas indígenas mexicanas, contudo, eles não contemplam os caracteres usados pelas línguas indígenas da Amazônia. 

O Linklado cobre mais de 40 línguas indígenas que possuem caracteres ou usos de acentos gráficos ‘não convencionais’, inclusive línguas de países vizinhos. A ideia para o produto surgiu quando Juliano e Samuel participaram da Olimpíada Internacional de Linguística, onde uma das atividades era escrever um artigo numa língua indígena. 

“Foi quando eu percebi a dificuldade de transcrever alguns caracteres do papel para o Word. Só depois que criamos o Linklado eu consegui escrever o artigo direito”, comentou Samuel.

Juliano afirmou que em apenas um dia conseguiu desenvolver o protótipo para o sistema Android. “O Samuel já tinha enviado como ficaria o layout. Eu fiz alguns pequenos ajustes e já enviei para ele o artigo com os caracteres. Ele ficou superanimado e disse que ia apresentar para a professora”, relembrou.

A professora em questão é a bióloga e doutora em Recursos Naturais, Noemia Kazue Ishikawa, que coordena o projeto ‘Redes de mulheres indígenas tradutoras e cientistas: conexões para uma educação transformadora em ciências no Amazonas’. A pesquisa é executada pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam).

“Em 2008, quando coordenei um projeto na região do Alto Rio Solimões, organizei uma cartilha bilíngue português/Tikuna. Foi a primeira vez que me deparei com a dificuldade de transcrever a escrita indígena para o computador. Desde então, eu venho abordando que é necessário um teclado para as línguas indígenas”, conta a pesquisadora.

Com o atual projeto de Noemia, em parceria com a antropóloga e linguista Ana Carla Bruno, está sendo desenvolvida a criação de uma rede de tradutoras de línguas indígenas. Essa ferramenta era essencial para solucionar a falta de caracteres em teclados de computador e/ou celular, um dos grandes desafios do projeto.

“Atualmente, o Linklado pode ser um instrumento de poder nas mãos dos povos indígenas, tendo em vista que agora eles poderão utilizar os símbolos, os diacríticos, enfim, os grafemas que melhor representam os sons e fonemas de suas línguas através da produção de seus próprios textos, histórias e narrativas. Neste sentido, penso que esta ferramenta pode contribuir com as ações das línguas indígenas”, argumenta Ana Carla.

Imagem: Divulgação

Linklado

O nome do software é uma combinação das sílabas ‘lin’ (línguas indígenas) e ‘klado’, que faz um trocadilho com a palavra ‘teclado’. Forma ainda a palavra ‘link’, que significa conexão.

Conectar os falantes das línguas indígenas a um teclado que contempla o seu vocabulário é uma das formas de ajudar na transmissão e sobrevivência das línguas indígenas sul-americanas na era digital, argumentam os idealizadores.

“No Amazonas temos mais de 52 línguas vivas, e muitos desconhecem essa riqueza linguística. Muitas dessas línguas contam com poucos falantes, algumas centenas ou milhares, e possuem aspectos interessantíssimos. A lenta morte de várias dessas línguas, causada por glotocídio — a marginalização de uma língua em favor de outra, o que resulta no desaparecimento gradual dessa língua, genocídios, missões, estigmatização em centros urbanos, não passagem entre gerações ou expansão rápida de meios de comunicação — em portugês, acabam levando à perda rápida de muitas dessas línguas. O Linklado seria uma forma de manter essas línguas vivas”, alerta Samuel.

O Linklado ainda facilitará outros cientistas indígenas e não indígenas a publicarem mais livros, cartilhas e informativos bilíngues em línguas indígenas e não indígenas, o que será uma grande inovação de fomento à leitura e a popularização da ciência. Aos falantes da língua, o Linklado facilitará a escrita casual e rotineira nas línguas indígenas, o que promoverá o fortalecimento da manutenção da língua.

Como funciona

Nos aparelhos Android, o Linklado substitui o teclado padrão do dispositivo com uma versão alterada que inclui os caracteres especiais, além de uma tecla que contém todos os diacríticos, que podem ser adicionados à letra anterior. Por exemplo, primeiro digita-se a letra ʉ, depois clica-se sobre a tecla com o diacrítico, produzindo, então, ʉ̀.

Já no Windows o sistema introduz uma pequena janela que permanece sobre a tela, somente com os caracteres especiais e os diacríticos. Desse modo, o usuário pode utilizar o teclado comum junto com o software do Linklado.

O aplicativo Linklado já está disponível gratuitamente na Play Store e na Windows Store, em uma versão adaptada para computadores.

Membros do projeto Linklado

O Linklado é formado pelos estudantes Samuel Minev Benzecry e Juliano Dantas Portela, e as pesquisadoras do Inpa Ana Carla Bruno, Ruby Vargas Isla Gordiano e Noemia Kazue Ishikawa.

Atualmente, o projeto também conta com a participação de Marinete Almeida Costa (Tukano/Ye’pâ-masa), Josmar Pinheiro Lima (Tuyuka/Ʉtãpinopona), Kaina Bruno Brazão, Rafael Estrela Freitas, Laura Corrêa Cavalcante, Odalis Ramos, Rosilene Fonseca Pereira (Piratapuia/Waíkhana), Rosilda Maria Cordeiro da Silva (Tukano/Ye’pâ-masa), Dagoberto Azevedo (Tukano/Ye’pâ-masa), Cristina Quirino Mariano (Tikuna/Magüta) e Dulce Maria Barreto Tenório (Tuyuka/Ʉtãpinopona).

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