Nesses últimos anos é visível o crescimento de pautas civis e sociais na internet, essas discussões, no entanto, criaram a falsa impressão de que todos nós de alguma forma temos acesso a elas, e que somos capazes de absorver e compreender todas as nuances que envolvem as mais diversas lutas sociais. Todas as questões que repercutem no espaço virtual parecem ganhar uma característica viral, como uma tendência do momento, levadas por isso muitas pessoas adotam discursos totalmente esvaziados de sentido.
Desde que passamos a utilizar redes sociais, elas se transformaram em extensões do mundo e do que somos, com o propósito de espelhar o que há de mais perfeito e melhor em nós, ou pelo menos o que nos faz parecer assim. Portanto, nossa humanidade e complexidade, que nos torna seres humanos, são reduzidas. Precisamos ser bonitos, inteligentes, perfeitos e compreender todas as lutas sociais. Longe de mim, tirar a responsabilidade social que todos temos em relação a isso, mas nesse movimento a cobrança que instaura sobre todos nós e nos coloca em uma situação de performar conhecimento sobre tudo, ainda que raso, demonstra que estamos caminhando para um lugar de não aprendizado. Se sabemos de tudo, por que devemos aprender algo? O pior dessa bagunça nem é o fato de não sabermos sobre tudo, por que isso é natural. O nocivo é que nos tornamos policiais e juízes de pessoas que ainda não deram conta de abarcar todo o conhecimento que nem mesmo nós conseguimos.
O cancelador e o cancelado se diferem por uma linha tênue, e se faz necessário afirmar que todos somos bem e mal em alguma medida, todos temos qualidades e defeitos, erros e acertos, e estamos longe de sermos Deuses que gozam da plenitude de uma celestial sabedoria, somos pessoas na plenitude apenas de nossas complexidades humanas e em constante aprendizado.
O cancelamento é algo que fazemos há muito tempo, e ele em si, não é o maior dos males, sempre tivemos o direito de escolher não ter acesso a algo que não queremos, de tirar de vista o que não gostamos ou discordamos, o problema se encontra na violência do discurso de ódio, na necessidade de destruição do outro e do aniquilamento de uma existência, no entanto, isso também não é recente, na história do mundo linchamentos sempre foram comuns e bastante presentes nas sociedades, e inclusive, é bem perceptível os resquícios disso nas ações atuais, na verdade, o que vemos é apenas readaptação dessa atitude em um espaço virtual. Se uma pessoa comete um crime, ela é julgada e punida segundo a lei, mas na internet, um lugar relativamente novo, não há exatamente leis que regulam as ações dos indivíduos. Por isso, essa prática pode ser comparada com o ditado “fazer justiça com as próprias mãos”.
Nesses últimos dias estamos acompanhando os desdobramentos na internet das ações da Rapper Karol Conká que se encontra em confinamento no Big Brother Brasil, ela, Lucas Penteado e Lumena, ambos negros, foram os primeiros alvos de cancelamentos no programa, no entanto, a artista tem apresentado atitudes bastante intoleráveis, e vem passando por uma verdadeira caçada de exterminação aqui fora. Não há como analisar essa situação sem levar em conta a questão racial da lógica punitiva colonial, inclusive, praticada infelizmente pela própria cantora contra os seus. Em nenhum outro momento em que ações tão nocivas como a de Karol foram praticadas por outros participantes, assistimos a essa mesma indignação moral. Na própria edição do reality do ano passado, 2020, por exemplo, houve casos de participantes terem entrado com queixas de estupro registradas em seu nome, e a reação do público foi completamente contrária.
Não concordamos com nenhuma ação que venha diminuir ou menosprezar as individualidades de ninguém, mas acreditamos em maneiras melhores de reeducação, sem ser pela dor e violência dos linchamentos virtuais. Precisamos atacar os erros e não as pessoas, elas significam uma parte pequena em comparação a engrenagem que movimenta o todo. Caminharemos quando entendermos que negros são múltiplos e que brancos e pretos são sujeitos ao erro, e sim, precisamos ser responsabilizados pelos nossos atos, no entanto, sem cruzar a linha tênue colonial punitivista. E claro, o que vai nos apresentar as pessoas não são só os erros, e sim a capacidade de cada um em aprender com os seus atos, é preciso esforço e estudo, especialmente por aqueles que têm o privilégio do acesso, e não se usar de mau caratismo para o encobrimento parcial de suas ações sob a desculpa da ‘reprodução estrutural’ .
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