A Novidade dos Anos de Ouro

Por
Kamilla Vieiralves
Há 3 anos atrás
Quem é Kamilla Vieiralves?

Manauara “born and raised”, mesmo que muita gente não acredite, 26 anos, taurina com ascendente em leão e ansiosíssima pela vacina. Formada em Jornalismo, decidi que tudo o que eu podia fazer não cabia só ali e fui buscar o algo a mais que faltava. Um dia de cada vez.



Planeta Terra, década de 50: A televisão era um bebê de fraldas, a cachorra Laika foi o primeiro ser vivo a ser posto em órbita, o rock n’ roll apareceu e Elvis Presley foi um sucesso estrondoso em todo o mundo. Surgiram também a Petrobras, a calça jeans, o James Bond, a Bossa Nova e os Beatles. No Brasil, vivíamos os Anos Dourados…

Longe de tudo isso, mas ainda assim à frente de seu tempo e lugar, foi nessa década que João Batista e seu irmão Fernando abriram a Novidade Discos. Em uma época em que Manaus não ia muito além do centro da cidade, eles abriram uma portinha na Eduardo Ribeiro que se tornaria depois – e por muito tempo – um dos lugares favoritos de jovens de várias gerações.

A nossa conversa começou quase de repente, durante o almoço. Entre uma garfada e outra, passeamos pela história da cidade, da música e da família que fez parte da vida de tantas pessoas. Disco era 78 rpm, televisão era a válvula, o Brasil ainda não era campeão do mundo de futebol, e tudo isso se mistura para contar a história desse lugar. O ano era 1958 e os primeiros Long Plays, ou LPs começaram a ser vendidos. O primeiro, de acordo com João, foi justamente sobre a Copa do Mundo e um dos primeiros sucessos de venda na loja: “o primeiro Long Play gravado foi na Copa de 58. Foi uma experiência que a fábrica fez para lançar em disco os lances e os gols de toda a Copa. Foi o primeiro disco a ser vendido, que nós vendíamos na loja”.

A história da Novidade Discos é grande e com muitos capítulos. Por cerca de 10 anos, foi a única loja de discos da cidade, período em que se consolidou como referência no comércio e conquistou lugar cativo no coração das pessoas. “O Bazar do Esporte faliu, era de uma família tradicional aqui de Manaus, que moravam na Marcílio Dias. Aí ficamos só nós no ramo, então criamos um círculo de amizades muito grande, porque todo o pessoal ia comprar disco lá conosco. A loja passou a ser um ponto de referência de todos os colégios de Manaus”. João diz se lembrar perfeitamente do que parecia um desfile de alunos vindos dos mais tradicionais colégios da cidade, como o Instituto de Educação, o Ginásio Brasileiro, Colégio Dom Bosco e o Colégio Rui Barbosa. “Dia de sexta-feira, quando terminavam as aulas, havia um desfile! Eles desciam dos colégios e iam até lá na loja por causa das músicas. E as meninas ficavam dançando dentro da loja mesmo. Pediam pra colocar música de rock, naquela época era o rock, o twist, e ficavam dançando lá. Chegava a um ponto que ficava muita gente na porta e eu tinha que pedir pra eles abrirem pro pessoal poder entrar. A loja era ponto de referência, não tinha outra loja de discos em Manaus”.

Depois de 23 anos na Eduardo Ribeiro, a Novidade Discos mudou para a Saldanha Marinho por 5 ou 6 anos, até mudar novamente para a 24 de maio, esquina com a Joaquim Sarmento. “Foi uma loja com venda de disco, material elétrico e lanchonete. Foi a primeira lanchonete em Manaus com a iluminação toda a gás neon.”, conta o antigo dono, orgulhoso. Ali, a Novidade Discos permaneceu até 1992, seu último ano de atividade. Não existem fotos da fachada da loja, mas a descrição que João faz, não só da loja, como da cidade, é tão precisa, que a imaginação toma conta das lacunas deixadas pela história. “Naquela época, nenhuma loja de Manaus tinha essas fachadas modernas que existem hoje. Eram aqueles casarões de portas grandes e não existia nem porta de ferro. Manaus era muito calma, não existia assalto, nada disso, então eram aquelas portas antigas de madeira, na base do trinco e fechadura. Os carros naquela época estacionavam no meio da Avenida, era a época dos bondes ainda! Tinha pouco carro em Manaus e a maior parte dos que tinha, eram importados. O tempo foi passando e as lojas grandes foram aparecendo. Vieram os grandões, depois que apareceu a Zona Franca, aí Manaus cresceu demais. Mas nós chegamos a pegar o início da Zona Franca. A nossa clientela, a maior parte, era do distrito”.

Os risos e as lembranças acabaram chamando a atenção de sua esposa que passava por ali atarefada. Socorro sentou-se então à mesa com um prato de sopa para um almoço tardio e também dividiu conosco suas lembranças. Ela contou aos risos e com um ar saudoso que a loja fez parte de vários momentos marcantes de sua vida: “se eu me lembro bem, era o point de Manaus! Era estreitinho, mas toda a sociedade de Manaus passou por dentro daquela loja! Todo mundo conhecia os irmãos da Novidade Discos. Aquela loja foi, inclusive, o palco de um término nosso com a música ‘Suave é a Noite’. Até isso eu lembro!” ela ria. “Fundo musical: ‘Suave é a Noite!’”.

Os dois se divertem lembrando de algumas das pessoas que passaram por ali, alguns com suas particularidades ainda intactas na memória. “Dr. Arnaldo, o Valois, o Governador Gilberto e até a esposa dele, a primeira esposa dele comprava conosco. Ela mandava o motorista pegar os discos lá na loja e levar”. Nesse ponto, não havia dúvidas de que a Novidade Discos havia conquistado o coração da cidade, mas se apenas isso era o suficiente para horas de conversa, João e Socorro conseguiram surpreender ainda mais com histórias de grandes nomes nacionais e mundiais que também haviam se encantado com a pequena lojinha. “Eu tinha um LP com um autógrafo todo especial. Perdi na mudança. Mas Jô Soares esteve lá, Chacrinha, Waldick ‘Só este ano’ [risos], só chamo ele assim, o Waldick Soriano. Toda vez que ele vinha à Manaus, ele ia lá na loja! Cláudia Barroso, Edite Veiga, Peri Ribeiro, Roberto! Mas ele ficou no carro, não conseguiu saltar pra ir lá. Aí nós tivemos que ir no hotel, até levei a Lorena, minha filha, lá, ela queria conhecê-lo”. Então Socorro exclamou toda sorridente: “Eu tive serenata do Roberto [Carlos]!”, contou orgulhosa, corando como uma menininha.

As curiosidades foram surgindo sem que precisasse fazer perguntas, algumas delas tão impressionantes que deram origem a pesquisas paralelas, como quando João contou sobre um LP exclusivo que foi vendido na Novidade Discos. “Unfinished Music №1: Two Virgins” de John Lennon e Yoko Ono foi lançado em maio de 1968 e censurado no Brasil por apresentar na capa e contra-capa os dois artistas nus, de frente e de costas. Também não havia músicas, mas experimentos musicais, gravados no estúdio particular da casa de John, em Londres. O LP é considerado peça de colecionador, mas ele conta que, através de um dos representantes com o qual ele fazia negócios, a Novidade Discos teve essa preciosidade em estoque. “Pessoas e representantes vinham de todo o país atrás desse LP”, ele conta, rindo com a lembrança, “nenhum outro lugar do Brasil teve, eu creio, mas nós tivemos aqui na loja”.

Vindos de uma família que se desfez cedo, filhos de imigrantes portugueses que chegaram à Manaus na década de 20 em busca do tão sonhado Eldorado, e morreram cedo, deixando os 7 filhos para serem criados em casas separadas por parentes distantes, João e seu irmão Fernando conseguiram construir um ambiente familiar em seu local de trabalho.

Socorro, de repente, pareceu lembrar-se de alguma coisa. Levantou-se e quando voltou trazia álbuns de família nos braços. Ela contou, em meio a sorrisos, que seus dois filhos tiveram a chance de conhecer e também fazer parte daquilo. “A Lorena ainda conheceu bem a loja, até 3, 4 anos, ela tava ali. Mais! Quando eu fiquei grávida do Erik, que a loja mudou, foi vendido o ponto, foi pra Joaquim Sarmento, a Lorena já tinha 10 anos. Ela viveu a loja! Então tava por dentro das músicas, como o Erik também. Ele não sabia ler, não sabia nada! Mas tava lá o inglês, todos os nomes das músicas que tinha lá”.

A Novidade Discos foi muito presente e representou grande parte da vida dessa e de tantas outras famílias de Manaus. “Nós vendemos disco pra 3 gerações. Primeiro os que estudavam, formaram família, e vinham os filhos ‘Ah! Meu pai comprava disco aqui e mandou que viesse comprar contigo!’ e iam comprar comigo. Eles cresciam, fizeram família e os filhos compraram comigo lá na loja de discos, porque eu era muito amigo deles. E era assim… Por incrível que pareça, até hoje tem gente que me reconhece e fala comigo na rua e a maior parte deles é daquela época”. João gosta de lembrar, não sem uma ponta de surpresa.

Os dois guardam com carinho as lembranças. Hoje, os filhos, que eram pequenos na época, lembram e tentam sempre saber mais, já que poucos registros físicos restaram. Mas pode perguntar por aí! Muitas pessoas ainda guardam lembranças e a Novidade Discos estará viva enquanto ainda houver quem se lembre dela.


Essa é uma opinião do autor e não do Portal Mercadizar.


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