Ariel Bentes e Nayá Costa; 24/03/2020 às 08:00

Apoie as suas irmãs, não apenas as suas irmãs cis

A sororidade feminina é o apoio necessário para impulsionar a luta por espaço para as mulheres, por isso, lembre-se de lutar também pelas mulheres trans e travestis

Vallery Maria

A luta por espaço e respeito é conquistada diariamente por Vallery Maria de Sousa Pinto.  Em um cenário repleto de violência, preconceito e exclusão, a professora apoia mulheres trans e travestis que estão em situação de vulnerabilidade nas ruas de Manaus.

Ainda na infância, com 4 anos de idade, Vallery veio a Manaus com seu pai e foi encaminhada pela primeira vez a um psicólogo. A família que sempre a ensinou a ver o mundo de todas as formas foi a mesma que não aceitou por muito tempo suas diversas características femininas. 

Filha de uma pedagoga e um delegado, Vallery cresceu livre de preconceitos por conta da posição social de seu pai. Ao iniciar a hormonização, aos 15 anos, ela viveu momentos de extrema dor, principalmente dentro de casa. Para esconder as mudanças corporais, usava ataduras. Mantinha também suas roupas e maquiagens escondidas no quarto de sua mãe, que na época apoiou a filha e tentou ao máximo protegê-la.

O dia em que Vallery foi aceita como era por sua mãe foi o mesmo em que seu pai tentou assassiná-la. Ainda jovem, ela teve de enfrentar violências físicas, verbais e psicológicas cometidas pelo homem que a criou.

Um leão por segundo

Após perder sua mãe, Vallery se viu sozinha e em uma situação de extrema pobreza. As pessoas presumem que ser trans é uma opção, mas segundo Vallery, não é bem assim. Ela teve que catar lixo para não morrer de fome, sair de seu emprego por preconceito, encarar olhares e comentários ofensivos e afins. A professora diz entender que passou por tudo isso para hoje servir de inspiração para outras mulheres na mesma situação. Hoje, ela é a mulher que tira da boca para dar a quem precisa e luta por seus direitos.

“Eu fui para o fundo do poço e esqueci quem eu era, mas hoje eu dei a volta por cima. Mato um leão por segundo, por mim e por elas”, comenta Vallery sobre tudo que passou e sobre seu atual trabalho na Associação de Travestis, Transsexuais e Transgêneros do Amazonas (ASSOTRAM). A professora criou junto com seu esposo o Projeto TransFormar com o objetivo de acolher e incentivar a formação acadêmica e profissional da comunidade trans em situação de risco, pois segundo ela, a partir do conhecimento elas poderão calar a sociedade que tanto as difama. Assim, ela usa sua história para incentivá-las a lutar pelo que é delas por direito. 

Vallery ressalta também a importância de ser tratada no feminino. A agressão cometida ao questionar seu  gênero e de diversas outras mulheres trans causa revolta e uma dor imensurável.

“Ser tratada no masculino é uma violência enorme, um assassinato à nossa identidade”. 

Maria do Rio 

Nascida e criada em Manaus, a contadora de histórias, como se intitula, Maria do Rio tem grande afeto pela cidade, por todos os seus parentes e pelos povos que habitam a Amazônia. “Eu sou um pouco de todo mundo e quero que todo mundo reconheça que tem um pouco de mim também.  Estou criando um mundo novo e seguro para re(existir) nesses corpos travestis”, ressaltou.

“Convivo com uma grande dor em meu peito, que às vezes é luta, às vezes luto, por todas as amigas que perdi no caminho e as nas que vamos perdendo para as micro agressões diárias”.

Ela acredita e usa o poder da representação de corpos travestis, seja como atriz, figura pública ou através de roteiros, para ajudar a libertar outras mulheres trans e travestis. Durante sua caminhada, criou uma relação profunda com a arte, onde participou de grupos folclóricos, macumbas e quadrilhas. “No ensino médio criei um grupo, o Grupo Folclórico Muiraquitã, com outros amigos nas aulas de Produção Folclórica com o Professor Mestre Nogueirinha, onde durante três anos desenvolvemos uma pesquisa voltada às manifestações culturais da América Latina e nos apresentávamos em espaços culturais e festivais da cidade”.

Já na universidade, Maria teve contato com movimentos sociais onde a luta pela ocupação e respeito às pessoas trans foram apresentados por meio de campanhas e manifestações. Desde 2015 ela tem tido uma forte participação na humanização de pessoas trans e negras na opinião pública e imprensa. Produziu performances nas ruas da cidade como o OCUPA MIC, performou em produtoras como a Eparrei Filmes, além de ter sido protagonista do premiado filme MARIA, que teve participação em mais de 50 festivais brasileiros e internacionais.  Para ela, a arte é uma ferramenta de cuidado, uma vontade de viver e se ver vivo. “Na guerra, a arte seria o hospital para onde vão os feridos, como vivemos em guerra, arte é luta sim, arte é vontade de viver e de ser ver vivo, de ser representado vivo e vivendo, não só sobrevivendo, mas acima de tudo vivendo.”

Quando perguntada sobre as mulheres que lhe inspiram, Maria do Rio ressalta a sua paixão por diferentes mulheres que vai de suas familiares, que são cozinheiras e curandeiras, à escritoras e cineastas.

“Cresci na cozinha com as mulheres e sempre gostei de como elas conseguiam transformar tudo em alimento. Depois vieram as saias de chita, os vestidos floridos, elas cantavam, dançavam, curavam a alma para viver e continuar. Por fim, as escritoras, comunicadoras, cineastas, traziam consigo o poder da palavra, longos pescoços, olhar  marcante, cabelos atrás dos ouvidos, brincos de argola, conhecedoras da vida, senhoras do destino, elas movem o mundo”, conta Maria.

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