Nesta semana em que se comemora o Dia do Orgulho LGBT, mais do que celebrar as vitórias, é preciso lembrar que muitos direitos básicos ainda precisam ser conquistados, dentre eles, o direito à saúde.
De acordo com a Constituição de 1988, o acesso à saúde é direito de todos e um dever do Estado, garantindo, através de políticas sociais e econômicas, a redução de doenças e o acesso universal e igualitário para todas as pessoas. Porém, essa não é a realidade de muitos integrantes da comunidade LGBTQI+. Homens e mulheres homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais ainda sentem que os médicos não estão preparados para atendê-los. E, às vezes, isso é manifestado pelos próprios profissionais das mais diversas maneiras.
Para nos aprofundarmos no assunto, conversamos com Valéria Soares, assistente social da Casa Miga de Acolhimento LGBT, localizada em Manaus. Em entrevista ao Meradizar, ela explicou que, para que possamos falar de saúde LGBTI+ precisamos, primeiramente, enxergar humanamente a comunidade, respeitar suas identidades de gênero e compreender que isso independe de sexo biológico e da orientação sexual de cada um.
“Entender que as particularidades da saúde dessa população estão diretamente ligadas ao gênero com o qual ela se reconhece, compreendendo que as demandas da pessoa gay, em determinados momentos o corpo e a forma como ele se relaciona afetivamente será totalmente diferente da pessoa trans, da travesti, da mulher lésbica, do bissexual, do intersexual etc e para isso a sociedade e os profissionais que lidam diretamente com essa população precisa se desconstruir e buscar conhecer essas pessoas. Saber que a saúde deles não é e não pode ser reduzida somente ao HIV/AIDS, como a sociedade heteronormativa tem colocado”.
É comum que a população LGBTQI+ seja associada a alguns estereótipos sociais negativos que interferem diretamente nos atendimentos prestados a esse grupo nos serviços de saúde. Entretanto, é direito de toda a população LGBTQI+ ter acesso aos diferentes serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo sistema privado de maneira igualitária, acolhedora e com atendimento humanizado. A heteronormatividade e o pensamento de que todos têm alguma infecção sexualmente transmissível (IST) é um dos maiores problemas no acesso à saúde, como explica Lucas Brito, enfermeiro e coordenador da Casa Miga.
“A assistência em saúde voltada para a população LGBTQI+ geralmente é focada nas infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Essa realidade restringe uma atenção integral à saúde que atenda as suas individualidades. Mulheres que se relacionam apenas com mulheres, homens apenas com outros homens, homens e mulheres com ambos os gêneros, considerando esse aspecto ainda limitado a respeito da sexualidade, além do atendimento voltado para as pessoas transgêneros relacionada ao uso de hormônios e os efeitos fisiológicos sobre esse corpo, e em parâmetro geral, o atendimento ao público LGBTQI+ voltado para saúde mental que entenda e respeite todas as diferenças”.
Os problemas ainda vão além. A estudante Adriane Rocha, de 22 anos, revela que nunca se sentiu confortável para falar sobre temas relacionados à sexualidade e saúde até mesmo com profissionais da Psicologia, com os quais deveria estar minimamente mais à vontade. “Eu fazia psicoterapia com uma psicóloga que, de alguma forma, me deixava constrangida e desconfortável. Sempre que entrávamos na questão de minha orientação sexual, ou ela tentava fugir do assunto, ou tratava com descaso, ou me diminuía de alguma maneira. Inclusive em uma das nossas sessões, ao falar sobre problemas com minha família, minha ex-psicóloga afirmou que minha mãe é frustrada comigo por eu me relacionar sexualmente somente com meninas (apesar de ser bi), e que nunca poderei dar um neto a ela, como se não houvesse outros meios para isso além das relações sexuais. O que me levou a desistir do tratamento, dentre inúmeras outras situações constrangedoras”, afirma.
Para travestis e transexuais, uma das principais barreiras é fazer valer o nome social e ser tratado conforme o gênero com o qual se identifica, como a estudante Pietra Lamounier, mulher transexual, explicou em entrevista ao Mercadizar.
“Já passei por alguns constrangimentos como prontuários não virem com nome social. É uma situação chata e triste. Esse constrangimento é gerado pelo despreparo dos estabelecimentos de medicina no trabalho com funcionários para o público trans. Infelizmente, alguns estabelecimentos ainda negam o nome social, principalmente em Manaus, onde as pessoas querem saber mesmo é saber do seu nome verdadeiro. Graças ao Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018, nos acolhem com o processo de retificação, no entanto, ainda existem aquelas pessoas que, na hora do atendimento, fazem questão de discriminar uma pessoa trans, desrespeitando por não ter tal possibilidade”.
Os médicos estão preparados?
Para evitar o preconceito, muitas pessoas preferem ocultar quem realmente são. Segundo o Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas – Promoção da Equidade e da Integralidade (2006), publicado pela Rede Feminista de Saúde e citado na política nacional, cerca de 40% das mulheres que buscam o serviço de saúde não revelam sua orientação sexual. Entre as que revelam, 28% relatam maior rapidez do atendimento do médico e 17% afirmam que eles deixaram de solicitar exames considerados por elas como necessários.
Em entrevista ao Mercadizar, Adriane contou que nunca sofreu preconceito porque nunca se sentiu confortável o bastante para revelar sua orientação sexual durante consultas. Por medo, a solução é omitir informações para evitar qualquer tipo de situação de discriminação.
Já do lado profissional, Valéria presencia essas situações diariamente quando acompanha seus pacientes em consultas médicas. Nessas visitas, o desrespeito às identidades de gênero, ao uso do nome social, além de perguntas invasivas e falta de compreensão sobre suas individualidades, gerando desconfortos e até mesmo situações de abuso e assédio são comuns.
“Tenho acompanhado os meus usuários (pessoas a quem presto atendimento) nos serviços de saúde porque, caso contrário, quando eles chegam em uma unidade de saúde do SUS ou algum serviço de saúde particular eles se deparam com situações de intolerância, preconceito, desrespeito ao uso do nome social e ainda presenciamos por vezes um mal atendimento, situações de maus tratos que vai da recepção ao atendimento médico, onde o profissional constrange o paciente, não examina e a consulta não chega a durar 10 minutos, principalmente quando o paciente trata-se de uma mulher e homem transexual ou uma travesti”, explica.
Para ela, a solução é que os profissionais da saúde estudem e se dediquem ao tratamento de pacientes LGBTQI+, não apenas tecnicamente, mas que, principalmente, entendam suas particularidades e lhes deem um tratamento humanizado e de qualidade.
“Para mudar esse cenário, é necessário que cada um se qualifique, que tenha a humanidade de se despir de seus pré-julgamentos e que esteja disposto a aprender com o outro. Digo sempre que ninguém nasce preconceituoso ou desconstruído, somos um reflexo da sociedade a qual fazemos parte, diga-se de passagem uma sociedade patriarcal, intolerante e heteronormativa. Portanto, se na sua formação não tem uma disciplina voltada para a temática LGBTI+, nada te impede de buscar esse conhecimento e trazer essa discussão para a sala de aula ou para o seu docente, enquanto não conseguimos mudar esse anseio da falta de uma disciplina específica. É necessário também que cada um se comprometa a prestar um atendimento humanizado mas para tal, é preciso estudar, é preciso se permitir!”, afirma Valéria.
Os fatos, claro, não podem ser generalizados. Durante a apuração desta reportagem, o Mercadizar ouviu integrantes da comunidade LGBTQI+ que não tiveram experiências ruins com profissionais da saúde, por exemplo, como Pablo Brotto, homem gay, relatou: “O atendimento depende muito de médico pra médico, da idade do médico, qual o grupo social em que ele está inserido. Já fui atendido por médicos incríveis que me trataram imensamente bem, com normalidade, nem melhor e nem pior por ser gay, apenas me atenderam como fariam com pacientes héteros. Apesar disso, a melhoria é sempre necessária”.
Além disso, outro indício positivo, mas que ainda carece de atenção, foi saber que ginecologistas e urologistas estão debatendo mais essas questões para a formação de especialistas.
Políticas não bastam
Em 2011, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O documento apresenta diretrizes e objetivos para que esse público seja melhor atendido na rede pública de saúde. Há ainda a cartilha Homens Gays e Bissexuais: Direitos, Saúde e Participação Social, lançada em 2016. A partir de então, diversas campanhas foram criadas com o objetivo de promover um atendimento “livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude da orientação sexual e identidade de gênero”.
Embora sejam positivos, os materiais do governo não são específicos quanto a colocar essas ações em prática. Cabe aos Estados e municípios implementarem medidas, como explica Valéria: “A Política Nacional de Saúde Integral LGBT é considerada um marco histórico para essa população, primeiramente porque essa política é fruto da luta dos movimentos sociais LGBTI+ brasileiros e segundo porque essa política reconhece as demandas de saúde dessas pessoas. Por outro lado, não existe uma obrigatoriedade dos Estados brasileiros de implementá-la. Para que ela saia do papel, é necessário articulação, diálogo e luta dos movimentos LGBTI+ cobrando do Estado que ela de fato se cumpra. Aqui na cidade de Manaus, houve e ainda acontece tal articulação e, como fruto disso, atualmente temos o ambulatório transexualizador que funciona na Policlínica da Codajás e oferece o processo transexualizador as pessoas trans. Infelizmente, o ambulatório ainda não oferece as cirurgias de redesignação de sexo”.
Além de não existirem políticas públicas efetivas ou programas de atenção em saúde que alcancem debates muito além do contexto das ISTs, um dos principais problemas é a falta de profissionais capacitados e pesquisas na área. “Não é possível ofertar um serviço de qualidade se não é falado sobre, se os profissionais não são capacitados, se não há produções científicas por meio de estudos voltados para essas especificidades existentes. E, atualmente, muitas conquistas da população LGBTQI+ estão sendo limitadas e paralisadas devido ao governo vigente em nosso país”, completa Lucas Brito.
O que uma educação sexual e inclusiva poderia ensinar?
Quando falamos sobre a necessidade de haver educação sexual nas escolas, como também torná-la inclusiva, nos referimos a planos de aula que tratem da fluidez de gênero, da anatomia sexual e que tratem a menstruação como ela realmente é, visando desvendar estigmas e que, principalmente, essas aulas não se restrinjam apenas às meninas.
“A educação sexual é preventiva, libertadora e necessária. Muitos estudos e relatos evidenciam que através da educação sexual crianças e adolescentes conseguem denunciar abusos sexuais, além do impacto sobre a maternidade e paternidade na adolescência e durante toda a vida, liberdade de entender sobre seu próprio corpo e do outro, possibilidade de relacionamentos saudáveis e prazerosos”, explica Lucas.
De acordo com uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pela organização sem fins lucrativos GLSEN, menos de 1 em cada 10 estudantes LGBTI+ disse ter tido aulas de educação sexual que incluíam sua identidade sexual.
Uma educação sexual que abranja a comunidade LGBTI+ beneficia a todos os alunos, não apenas aqueles que se identificam como parte do grupo, podendo ser um elemento crucial para a melhoria dos resultados da saúde da população em geral.
“A educação sexual é imprescindível quando falamos de saúde, seja para a pessoa heterossexual ou LGBTI+, porque trata de você conhecer e entender seu próprio corpo e saber cuidar desse corpo. Além disso, poderia possibilitar educar as novas gerações para o respeito a todas as identidades de gênero, poderia ajudar a estabelecer um diálogo aberto, livre de preconceitos e de tabus”, afirma Valéria.
Atualmente, no Brasil, não existe uma legislação que determine como, quando e em qual contexto cada escola deve tratar a questão da educação sexual, mas existem orientações do Ministério da Educação (MEC) em que a sexualidade é vista como um tema que deve ser tratado de maneira transversal na formação escolar. No entanto, essas regras não são aplicadas na prática.
Em 2018, o MEC homologou a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) da educação infantil e do ensino fundamental, que deve ser implementada nas escolas até 2020. No texto, a educação aparece somente a partir do oitavo ano, na disciplina de ciências, sob o aspecto da reprodução humana e da prevenção de ISTs e gravidez na adolescência. O documento traz o que cada criança deve aprender em cada etapa de ensino, mas não veta que outros conteúdos sejam adicionados.
Segundo pesquisa divulgada pela Datafolha no ano passado, 54% dos brasileiros concordam que educação sexual deve ser debatida nas salas de aula, enquanto 44% discordam e 1% não opinou sobre o tema. Este resultado vai na contramão do que movimentos como “Escola sem Partido” defendem – de que a educação sexual na escola promove uma erotização precoce das crianças.
O que uma aula de educação sexual ensinaria?
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O desenvolvimento da identidade de gênero das crianças começa quando elas são pequenas, por isso, também deveríamos começar a falar mais cedo sobre transgêneros e questões de identidade
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A menstruação é natural e afeta a vida de todos nós, não apenas de quem se identifica como menina
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O sexo é muito mais do que apenas o sexo heterossexual básico de pênis na vagina
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É crucial falar aberta e honestamente sobre as partes do corpo e o que é considerado “normal”
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