Isabella Botelho; 07/07/2020 às 11:00

Mudanças na transmissão do futebol brasileiro abrem espaço para o streaming

Experiências do Flamengo com a FlaTV abriram debate sobre novos formatos de transmissão

O futebol brasileiro está vivendo um momento que pode mudá-lo bruscamente no âmbito do marketing e dos formatos de transmissão das partidas. Tudo começou no último dia 18 de junho, quando a Presidência da República editou a Medida Provisória 984, alterando as regras de transmissão de partidas de futebol no Brasil: os direitos de transmissão passaram a ser do mandante do jogo. A medida provisória foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União e surpreendeu clubes e a CBF.

Segundo o texto, os direitos de transmissão dos jogos passam a pertencer apenas ao clube mandante. A lei, que estava em vigor até o dia 18 de junho, dizia que os direitos pertenciam às duas entidades esportivas participantes do evento. Ou seja, para se transmitir uma partida, era necessário um acordo com os dois clubes envolvidos no jogo. A MP – publicada sem uma discussão entre clubes, federações e a CBF – tem efeito por um prazo de 60 dias, prorrogáveis por mais 60 até que o Congresso a aprove ou a rejeite. Se ela for aprovada, a transmissão da partida apenas dependerá de uma negociação entre as duas equipes para os jogos em que não houver uma definição de quem é o mando do campo.

Em nota, a CBF disse que não participou da elaboração da MP. A entidade afirma que é simpática à ideia de mais poder de negociação aos clubes e às entidades do futebol e conclui que no Congresso, os envolvidos participarão do debate. Juristas e especialistas criticaram a decisão.

No mesmo dia, a Globo, que transmite as principais ligas do futebol brasileiro, divulgou a seguinte nota: “Sobre a medida provisória 984, que alterou a Lei Pelé e determinou que os clubes mandantes dos jogos passem a ser os únicos titulares dos direitos de transmissão, a Globo vem esclarecer que a nova legislação, ainda que seja aprovada pelo Congresso Nacional, não modifica contratos já assinados, que são negócios jurídicos perfeitos, protegidos pela Constituição Federal. Por essa razão, a nova medida provisória não afeta as competições cujos direitos já foram cedidos pelos clubes, seja para as temporadas atuais ou futuras. A Globo continuará a transmitir regularmente os jogos dos campeonatos que adquiriu, de acordo com os contratos celebrados, e está pronta para tomar medidas legais contra qualquer tentativa de violação de seus direitos adquiridos”.

Por ser o único time disputando o Campeonato Carioca sem um contrato firmado com a Globo (emissora que detém os direitos de transmissão da liga), o Flamengo se baseou nessa MP para transmitir a sua partida contra o Boavista na quarta-feira, 1, de graça em suas páginas no YouTube e no Facebook. Pelo fato do time do interior do Rio de Janeiro fazer parte do acordo, a emissora entendeu que a Medida Provisória não poderia alterar um contrato celebrado antes de sua edição e protegido pela Constituição.

Como a Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj) e os demais clubes não foram capazes de garantir a exclusividade prevista no contrato, a Globo esclareceu que não restou outra alternativa além da rescisão e o encerramento imediato das transmissões dos jogos do Carioca. Em comunicado divulgado na quinta-feira, 02, foi anunciada a rescisão do contrato com a Ferj e que a emissora não exibiria mais nenhum jogo do Campeonato Carioca neste ano. A decisão valeria para transmissões na TV Globo, SporTV e Premiere.

Em nota, a Globo esclareceu que “é parceira e incentivadora do futebol brasileiro há muitas décadas e entende a importância do esporte para Clubes, jogadores, marcas e torcedores. Exatamente por isso, apesar da decisão de rescindir o contrato imediatamente, está disposta a fazer os pagamentos restantes desta temporada, em nome da sua parceria histórica com o futebol e da sua boa relação com as equipes. Mas acredita que o futebol só será capaz de vencer as inúmeras dificuldades com planejamento e segurança jurídica para aqueles que investem altas quantias nesse negócio tão importante para o Brasil e para os brasileiros”. 

A Ferj, então, entrou na Justiça contra a rescisão para obrigar a Globo a seguir transmitindo o jogos restantes. Na noite da sexta-feira, 03, a federação obteve uma liminar para garantir a exibição da partida. Segundo a decisão concedida pelo juiz titular Eunice Bitencourt Haddad da 24° Vara Cível do Rio de Janeiro, a Rede Globo teria que honrar o contrato vigente e transmitir a partida entre Fluminense e Botafogo da semifinal da Taça Rio e os jogos da final da competição. Caso não cumpra, a emissora terá que pagar uma multa de R$ 5 milhões por partida não transmitida. Como solicitado, o jogo foi transmitido, mas a emissora recorreu da decisão.

Nesta segunda-feira, 06, a Globo recorreu à Justiça para tentar derrubar a obrigação de transmitir o Fla-Flu, final da Taça Rio e a juíza  a juíza Eunice Bitencourt Haddad determinou que a liminar concedida por ela mesma na sexta-feira a favor da Ferj não é válida para jogos do Flamengo. O clube não tinha contrato com a Globo. Assim, os clubes estão livres para ceder os direitos do jogo de quarta-feira ou fazer a transmissão por conta própria.

As consequências da nova norma só ficarão claras conforme o mercado mostrar como reage a elas. Por um lado, agora uma empresa de televisão poderia se aproveitar de uma brecha para transmitir jogos de uma equipe sem pagar pelos direitos: bastaria comprar os direitos de transmissão de um ou mais de seus rivais e televisionar os jogos fora de casa do time que não quis negociar os direitos de imagem. Conforme essa lógica, os jogos feitos em casa não passariam no canal de TV em questão.

Por outro lado, cada contrato traz suas particularidades. Assim, esperam-se renegociações contratuais e ações coletivas num futuro próximo – sem nem mencionar a influência em futuras negociações que times altamente populares passariam a deter. É o caso do Flamengo, em ascensão: o rubro-negro alcançou status de time a ser batido depois de uma reorganização financeira que durou anos. As contratações caras já aconteciam antes de 2019, mas elas só aumentaram e seus retornos foram vistos em campo com o time vencedor do ano passado. Para este ano, o Flamengo é o favorito nas casas de apostas em todas as competições que disputa

O caso, apesar de ainda sem um encerramento definitivo, é um marco histórico no mercado de mídia e marketing esportivo, abrindo precedentes para futuras reconfigurações de contratos de direitos e formatos de transmissões. Algo que pode refletir não apenas nos acordos da Globo, mas também de outros grupos, como Turner e Bandeirantes. No Campeonato Brasileiro, por exemplo, Coritiba e Bragantino ainda não fecharam contratos com nenhuma emissora, abrindo oportunidade para que eles usem a MP 984 para negociar seus direitos quando tiverem o mando de campo. Com a pandemia e a maioria dos torneios interrompidos no Brasil, por enquanto, o cenário é de incertezas.

Flamengo bate recordes e levanta o debate do futebol no streaming

O jogo entre Flamengo e Boavista, no dia 1º de julho, foi transmitido no canal Fla TV através de várias plataformas (YouTube, Facebook, Twitter e MyCujoo) e atingiu pico de 2,2 milhões de espectadores simultâneos, recorde para um jogo de futebol no streaming brasileiro. 

O YouTube, com 2,1 milhões no pico, reuniu a maior parte da audiência e tornou-se uma das maiores lives da plataforma no mundo. Somando todas as redes, foram mais de 14 milhões de visualizações ao longo da partida. Os números, claro, fizeram brilhar os olhos do clube. Afinal, se a recepção foi positiva num jogo sem tanta importância para o multicampeão, jogos importantes poderiam bater outros recordes e trazer, de fato, receita.

Pensando nisso, foi anunciado que no jogo seguinte, contra o Volta Redonda, disputado no domingo, 05, seria cobrado o valor de R$10 para assistir a partida pelo MyCujoo. No entanto, a recepção não foi como imaginada. Pelo contrário, as críticas foram instantâneas. Influenciadores que nos últimos meses defenderam todas as decisões da diretoria fizeram críticas públicas e se disseram traídos. A rejeição enfática e quase unânime nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp surpreendeu a diretoria – que saboreava imensa popularidade desde o espetacular sucesso do futebol em 2019.

No domingo, a situação piorou. Alguns sócios reclamavam de não receber e-mail de confirmação. Outros diziam ter recebido e não conseguiam acessar. Nas redes sociais, centenas de pessoas relatavam desde cedo que não conseguiam pagar ou acessar o MyCujoo. Para pagar os R$ 10 (R$ 9,96 mais precisamente), o aplicativo fazia uso de uma plataforma terceirizada de pagamentos, que começou a travar. Após inúmeras reclamações, não houve outra alternativa a não ser liberar o acesso de graça. 

Mesmo com o anúncio de última hora da transmissão na Fla TV com imagens, o jogo entre Flamengo e Volta Redonda teve boa audiência no YouTube. Não chegou a superar os números alcançados na partida contra o Boavista no meio da semana, mas conseguiu atingir pico de 1,5 milhão de espectadores simultâneos ainda no primeiro tempo. Na etapa final, o pico passou de 1,8 milhão. Por isso, apesar das críticas e dos problemas, o novo formato continua chamando atenção. Será que, a partir de agora, será cada vez mais comum assistirmos a jogos de futebol através do streaming? Será que os clubes criarão suas próprias plataformas de streaming? Quais serão as mudanças no marketing e na receita dos clubes? Quais as consequências para as emissoras e patrocinadores?

A verdade é que a cada ano que passa, esses serviços vem ganhando cada vez mais projeção e audiência. No futebol, as principais ligas e algumas sem tanta visibilidade já incorporaram este modelo há alguns anos. Aqui no Brasil, esta possibilidade vem ganhando força, principalmente após os últimos episódios envolvendo a briga de gigantes entre Flamengo e a Rede Globo. 

 

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