Patrícia Patrocínio; 20/11/2020 às 09:00

“E se eles quisessem se vingar da escravidão agora?”

Uma reflexão sobre as manifestações black lives matter e a violência policial contra negros do Brasil no período de quarentena

A palavra genocídio é usada para fazer referência ao ato de exterminação sistemática de um grupo étnico. O Instituto de Segurança Pública em seu estudo sobre a evolução dos principais indicadores de criminalidade e atividade policial, registrou um recorde em mortes de pessoas negras causadas por agentes públicos de segurança no Rio de Janeiro no ano de 2019; segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de negros mortos pela polícia é de 75,4%. Em abril, o jornal O GLOBO divulgou uma matéria que contabilizava as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia do Coronavírus, desde o início do levantamento, elas haviam dobrado em relação ao mesmo período do ano passado, quando não havia quarentena, vale ressaltar, que as favelas são locais racializados. 

Os dados citados provam que a violência policial no Brasil não só é autorizada pelo estado como tem ordens precisas de cor, classe e território. O assassinato de corpos negros não é um fenômeno extraordinário na realidade brasileira. As estatísticas e o silêncio são as expressões do racismo como um dos pilares formadores dessa sociedade.

A violência contra negros nos Estados Unidos é inferior se comparada ao Brasil.

No Brasil e nos Estados Unidos, o período da escravidão não é o único ponto em comum, a construção do racismo estrutural, institucional, ambiental e cultural foi fundamental para tornar à violência contra indivíduos negros um modus operandi em ambas as sociedades: João Pedro, 14 anos, baleado com um tiro de fuzil em uma operação conjunta da polícia Civil e Federal do Rio de Janeiro no Complexo do Salgueiro; George Floyd, 46 anos, mesmo imobilizado, foi morto asfixiado pelo policial Derek Chauvin em Minneapolis. No mais, é humanamente impossível citar todos os casos que ocorrem diariamente, vou me ater a esses dois pela grande repercussão que tiveram e pelo o que desencadearam no cenário mundial.

Segundo o Sistema Nacional de Estatísticas Americano, por dia, cerca de três afro-americanos são mortos pela polícia. No Brasil, o número de mortes diárias de negros por essa mesma instituição é seis vezes maior, considerando dados do Anuário de Segurança Pública de 2019. Os afro-brasileiros correspondem por mais metade da população brasileira, o que significa 42,7% a mais que a população negra norte americana que soma 12,3%; 

Ao realizar o recorte regional os dados são alarmantes, os estados que concentram as maiores taxas de homicídios contra pessoas negras pertencem às regiões Norte e Nordeste; Roraima com 87,5% teve a maior taxa de homicídios de negros do território nacional em 2018; o número de homicídios de pessoas negras no Amazonas saltou de 482 em 2000 para 1.516 em 2017, crescendo 53,4% em um período de 10 anos, as mortes de afro-ameríndios no Amazonas correspondem a 44,7% em comparação a 15,7% de brancos.

Violência Racial no Norte

 Quando o assunto é vulnerabilidade à violência, negros e não negros vivem realidades completamente diferentes dentro de um mesmo território, aponta o Atlas da Violência.

Nos estados como Amapá, Amazonas e Pará, que compõem a região amazônica, as relações raciais são interpretadas de uma maneira particular devido às narrativas e elementos raciais que se misturam, portanto, alguns desencontros podem ocorrer, como considerar pessoas de ascendência indígena e branca nos registros de mortalidade como brancas, quando estas podem ser até mesmo pretas ou indígenas. Desse modo, o levantamento e interpretação das mortes que ocorrem nessa parte do país não consegue ser exato e fiel ao contexto dessa realidade em razão das especificidades da região, ou seja, os números podem ser maiores.

Mas por que é preciso que os Estados Unidos se manifeste para que a sociedade brasileira enxergue a sua situação?

O racismo levou séculos para ser construído e, apesar de Brasil e os Estados Unidos compartilharem o mesmo legado histórico escravocrata, seria equivocado pensar que o processo de incorporação da narrativa racista de inferiorização de negros pela estrutura social e suas instituições se daria completamente da mesma maneira ou fosse desconstruído tão rapidamente nessas sociedades; no Brasil, nunca houve uma política explícita de segregação racial como ocorreu nos Estados Unidos após a abolição, a falta dessas políticas segregatórias, no entanto, não nos transformou no “paraíso racial” como muitos acreditam e ainda defendem. Outro fator que favorece esse comportamento é a memória social e histórica brasileira que ainda guarda o vestígio da lógica do colonizado tomando como referencial e copiando qualquer país que assumiu em algum momento da história o posto de colonizador.

A segregação racial nos Estados Unidos impôs ao povo negro norte americano a necessidade do desenvolvimento de instituições independentes, permitindo sua organização enquanto sociedade civil, mais tarde, a formação política de lideranças afro-americanas favoreceu o surgimento de movimentos de massas como os liderados por Martin Luther King e Malcolm X. No caso do Brasil, nossa sociedade foi construída sob um pilar fantasioso e desonesto de harmonia racial e igualdade, o acesso de negros as instituições básicas ainda que expressamente inferior em relação aos brancos criou uma ideia de flexibilização da posição social que ocupavam, a presença de um afro-brasileiro em qualquer instituição básica já garantia que a ideia de vivermos uma harmonia entre raças ganhasse um caráter de verdade.

Além disso, no Brasil houveram as políticas de embranquecimento adotadas pelo estado nos séculos XIX e XX que foram as principais responsáveis pelo processo de diluição da identidade afro-brasileira, com a divisão da categoria negra em pretos e pardos favorecendo a criação de um tipo de contrato racial em que negros de pele clara,  considerados “pardos”, podem fazer com a branquitude – a rejeição a negritude – o que nunca foi possível nos Estados Unidos, pois este país segue o princípio da classificação racial dada pela regra “uma gota de sangue” ou “one-drop rule” cujo pressuposto é: qualquer pessoa com pelo menos um ancestral africano já é considerada negra.

Mas o que é ser negro no Brasil? 

A autoafirmação da identidade negra no Brasil significa resistir, não se curvar ao branqueamento, o que para muitos “pardos” pode ser motivo de receio. É comum, negros de pele clara performarem uma branquitude ou o mais próximo que podem chegar disso, mas esse problema não mora só na necessidade de se tornarem mais aceitos em espaços brancos ele é a ponta do iceberg para uma questão ainda maior: as consequências do apagamento do ensino da história do negro no Brasil. A primeira lei que propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana foi assinada em 2003, no entanto, para esse ensino realmente ser eficiente requer uma atuação em cadeia e transformações em diversas instâncias inclusive a acadêmica e isso demanda tempo. 

A falta de conhecimento da contribuição do povo negro para criação dessa sociedade somada à diluição da identidade negra fundamentada nas políticas de embranquecimento dos séculos passados, criou um fenômeno brasileiro curioso: negros de pele clara que não sabem que são negros mas que não ficam isentos de sofrer a violência racial proveniente do racismo estruturante, tendo em vista esses fatores que contribuem não só para a reprodução do racismo mas que também dificultam o seu combate e a manifestação da indignação moral da população, bem como a articulação do povo negro brasileiro. 

Como os acontecimentos de 2020 contribuíram para o avanço da pauta racial

O assassinato de Floyd gerou uma onda de revoltas e protestos contra o racismo e a violência policial em Minneapolis que se espalharam pelo mundo; inspirados no movimento negro norte americano Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) diversos países como França, Reino Unido, Argentina, Holanda, Israel, Austrália e Brasil foram às ruas questionar as autoridades, denunciar o racismo e a violência policial.

Para o Brasil, o movimento chegou em um momento propício e necessário, desde o início do ano com a entrada dos participantes negros Thelma e Babu em um reality show, as discussões sobre questões negras ganharam um espaço no horário nobre, com o início da pandemia de Coronavírus o programa que bateu recordes de audiência ocupou um lugar especial na vida de uma grande parcela da população que acompanhou e debateu junto com os participantes confinados diversas pautas, inclusive a racial. 

Acredito que o programa contribuiu ainda que simbolicamente para o avanço das discussões raciais, especialmente nos espaços digitais, onde uma grande parte da população passou a habitar no período de isolamento, esse fator somado ao sentimento de empatia crescente nesse cenário permitiu que o movimento Vidas Negras Importam germinasse em um solo que lenta e raramente é adubado se tornando mais uma expressão desse momento transformador e conturbado de avanço em meio ao retrocesso que vivemos desde as eleições de 2019. 

Sem dúvidas o movimento negro brasileiro é o maior exemplo da resistência em relação ao racismo, e só ganhou força e progressão desde a abolição. Não tivemos nenhum  movimento negro de massa como ocorreu nos Estados Unidos, mas, estamos cada vez mais próximos de ter; os assassinatos de George e João Pedro  ganharam espaço na reflexão pública mundial com o retorno do povo negro às ruas despertando a indignação moral adormecida e evidenciando que mesmo com tantas narrativas de negação e invisibilização ainda existentes o povo negro do Brasil está cada vez mais articulado.

Agora é o momento de usar a imaginação

Pense nos protestos dos Estados Unidos e nas inúmeras violências que o povo preto é submetido desde a chegada dos europeus a costa africana no século XV; na violência policial, em especial, a que matou João Pedro em casa; Pense em Marielle, Jennifer, Kauan, Kauê, Agatha e Kathleen, Amarildo, Edward, Claúdia, George, Evaldo que teve seu carro fuzilado com 81 tiros, na violência dos açoites, dos estupros da tão “gloriosa” miscigenação, nos 23 minutos que faltam para mais um jovem negro morrer, nas operações policiais nas favelas, na desigualdade histórica do nosso país e em como a pandemia atingiu a população negra, volte a pensar na violência dos protestos do movimento Black Lives Matter e então fazendo alusão ao verso de Emicida que deu o título a esse texto, imagine:

“E se eles quisessem se vingar da escravidão agora?”

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