A pandemia do novo coronavírus escancarou as desigualdades em vários campos. Seja na cultura, na posição que a mulher ocupa na sociedade, no acesso às informações, na saúde ou nos debates políticos. Na educação não foi diferente. Se a situação do Brasil no âmbito educacional já era motivo de críticas, a pandemia apenas mostrou a realidade que para muitos parecia invisível.
Desde que o distanciamento social começou a ser recomendado no país, creches, escolas, faculdades, universidades e centros de ensinos fecharam as portas. Se antes os aparelhos eletrônicos eram proibidos nas salas de aula, com a suspensão das atividades presenciais, professores e alunos passaram a adotar tecnologias educacionais para manter o conteúdo em dia.
A estratégia, no entanto, mostrou a desigualdade e as dificuldades enfrentadas por alunos e professores – desde alunos que não têm acesso a Internet ou a computadores, até professores que passam por desafios para transportar o conteúdo para o digital, sobrecarga docente e problemas sociais. Diante deste cenário, ficou claro que o Brasil não está preparado para o ensino digital – pelo menos não os 4,8 milhões de crianças e adolescentes que não têm acesso a Internet e correspondem a 17% de todos os brasileiros na faixa etária de 9 a 17 anos. Os dados foram divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em junho.
A pesquisa TIC Educação 2019, divulgada em junho, aponta que 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa. Nas escolas particulares, o índice é de 9%. Os dados coletados mostram o cenário em que a educação entrou na pandemia em 2020 e o desafio no ensino remoto, montado às pressas.
Atualmente, o Amazonas vive duas realidades bem distintas na educação desde que as aulas presenciais foram retomadas. No ensino privado, que foi autorizado a retornar em junho de forma híbrida e reduzida, quase não há registros de covid-19 na comunidade escolar. Na contramão das instituições particulares, as escolas públicas veem o número de casos aumentar diariamente.
Primeiro estado no Brasil a confirmar a volta às aulas presenciais, no dia 10 de agosto, cerca de 106 mil alunos do Ensino Médio da rede estadual de ensino em Manaus retornaram às escolas de forma híbrida e com apenas 50% da capacidade total das salas. O ensino fundamental segue exclusivamente com o programa “Aula em Casa” e a data do retorno presencial ainda é incerta.
Uma testagem em massa foi promovida pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), entre 18 e 28 de agosto, em que 2.051 profissionais da educação foram testados. Destes, 629 testaram positivo para a covid-19, dos quais 476 estavam fora do período de transmissão e 153 com infecção recente. Os primeiros resultados deste mutirão fizeram com que a Secretaria de Estado de Educação e Desporto (Seduc) adiasse o retorno dos estudantes do Ensino Fundamental, antes prevista para 24 de agosto.
Entre abril e maio, o Amazonas foi um dos primeiros estados a sofrer com o colapso do sistema da saúde por conta da pandemia. Imagens de hospitais superlotados e centenas de valas comuns sendo abertas nos cemitérios se tornaram normais e rodaram os noticiários de todo o mundo. Mesmo assim, cerca de três meses depois, o governo optou por reabrir as escolas de forma gradativa com a justificativa de que o estado já havia passado pelo pico da doença e assistia a uma queda no número de casos.
Desde que o retorno às aulas foi confirmado, professores realizaram diversos protestos contra a retomada das atividades em razão da pandemia. Em entrevista ao Mercadizar, Lincoln da Silva, professor de Língua e Literatura Portuguesa na Escola Estadual Professor Roderick de Castelo Branco, afirma que o retorno às salas de aula no Estado não tem dado certo. Segundo ele, diversos alunos tem desistido e outros optaram por continuar com as aulas remotas pois são ou moram com alguém do grupo de risco. Além disso, o professor também conta que os estudantes que estão indo para a escola não tem correspondido à expectativa de ensino, não participam ativamente das aulas e faltam com frequência, fazendo com que ele muitas vezes tenha apenas um ou nenhum aluno em sala.
“Não me sinto nenhum pouco seguro, pois a escola em que trabalho já teve cerca de 15 professores que testaram positivo para o Covid- 19 em período de transmissão. Os protocolos de segurança não garantem a integridade física de ninguém e são recomendações que na prática não funcionam. Como eu moro com minha mãe que é diabética, tenho muito receio de me contaminar e acabar infectando ela também”, disse Lincoln.
Lincoln afirma também que os estudantes, ao contrário dos professores, não foram testados e muitos não cumprem os protocolos de segurança. “De vez em quando tem aluno com a máscara abaixo do queixo, outros tendo contato físico com o colega e trocando materiais como canetas e caderno. Alguns só colocam a máscara na hora que chegam na escola e não respeitam o distanciamento mínimo obrigatório”.
Já na rede municipal, a volta às aulas presenciais também não possui uma data definida. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (SEMED), um plano com diretrizes pedagógicas estava sendo executado no segundo semestre. Com cinco fases, o plano em questão prevê o funcionamento das unidades “como ponto de apoio aos professores e aos alunos como reforço ao fluxo de aprendizagem do ensino remoto, bem como aqueles que não possuem internet ou televisão, reduzindo dessa forma a desigualdade e ampliando a participação no projeto de ensino remoto”, explicou em nota.
Enquanto isso, a situação na rede privada é outra. De acordo com o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado do Amazonas (Sinepe), cada uma das 70 instituições afiliadas assumiu o compromisso de cumprir rígidos protocolos de segurança. Além da criação de regras próprias, elas devem seguir uma linha geral de recomendações, entre elas o comprometimento de adoção ao modelo híbrido, com metade da turma em casa e a outra metade em sala, e a determinação de que todos utilizem máscaras.
Através da sua filha, a professora de Artes Gisele Riker tem vivenciado esta outra perspectiva da história. Professora do Ensino Fundamental I da Escola Estadual de Tempo Integral Almirante Barroso no qual as aulas ainda permanecem suspensas, Gisele tem uma filha que é estudante de uma escola particular em Manaus e tem observado de perto a forma como o ensino público e privado tem enfrentado a pandemia do novo coronavírus.
“A minha filha estuda em uma escola privada. Quando retornou as aulas dela eu ainda não me sentia segura para essa volta, tanto que ela não voltou logo. Ela ficou um mês ainda na aula remota e quando os casos começaram a diminuir ela retornou para escola, mas ela frequenta a escola de maneira intercalada e tem dias que ela fica em casa e participa da aula remota”, conta Gisele. “A maior diferença entre o público e privado é a estrutura mesmo. Embora o Estado tenha tentado resolver, algumas escolas públicas possuem uma estrutura precária para atender todas as medidas de segurança como, por exemplo, pias insuficientes para a demanda de alunos e salas de aula, mesmo com a divisão de turmas, com mais de 18 estudantes em média por sala”, complementou ela.
Segundo especialistas, a experiência de volta às aulas em Manaus é um exemplo a não ser seguido. Em entrevista ao El País divulgada em 27 de agosto, o pesquisador Jesem Orellana, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi cético e crítico quanto a efetividade dos protocolos. “E os casos assintomáticos? Na verdade, a covid-19, na maioria das vezes, é assintomática nas crianças. Podem ter crianças que tenha se infectado e, no entanto, passou despercebido, uma vez que não apresentou sintomas”, afirmou.
Um levantamento feito pelo epidemiologista apontou que a decisão de reabrir as escolas aconteceu num contexto de aumento do número de mortes por covid-19 na cidade. De acordo com Orellana, houve uma alta de 73% no número de novas mortes por covid-19 na semana anterior a retomada às aulas na rede estadual. Entre 5 e 11 de agosto foram registradas 19 mortes, contra a média de 11,6 nas três semanas anteriores, de acordo com dados da FVS.
Instabilidade no comando do MEC
Desde 2019, o comando do Ministério da Educação é instável. O primeiro ministro da educação do governo Bolsonaro foi Ricardo Vélez, mas após críticas do presidente sobre a sua gestão foi demitido em abril, quando tinha cerca de três meses à frente da pasta. Apesar do pouco tempo no MEC, Ricardo se envolveu em diversas polêmicas como, por exemplo, quando pediu que diretores e professores filmassem os seus alunos cantando o hino nacional e recitando a frase “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, lema da campanha presidencial de Bolsonaro.
No dia 9 de abril do mesmo ano, Abraham Weintraub assumiu o cargo onde ficou até o dia 19 de junho de 2020. Assim como Ricardo, a gestão de Abraham foi marcada por polêmicas, como cortes nos orçamentos das universidades e institutos federais, inúmeros erros no Enem, críticas à China e comentários racistas. Abraham anunciou a sua saída no dia 18 de junho e tornou-se diretor representante do Brasil no Banco mundial em Washington, EUA.
Com a saída de Weintraub, Carlos Decotelli foi anunciado como o próximo ministro, mas sua nomeação foi cancelada após Francisco Bartolacci, diretor da Universidade de Rosário, afirmar que Carlos não teria concluído seu doutorado na faculdade e outras irregularidades em seu currículo virem à tona.
Depois de quase um mês com a pasta da educação sem um comandante e diversas especulações de quem assumiria o cargo, o professor e pastor Milton Ribeiro foi nomeado como o quarto ministro de educação do governo de Jair Bolsonaro. Milton tem acompanhando as polêmicas das gestões anteriores e, recentemente, em entrevista ao Estado de S. Paulo disse que não considera a homossexualidade normal e a associou a “famílias desasjustadas”.
Ao longo dos anos, a educação brasileira já sofria com cortes orçamentários
Na história recente, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 é um marco nos cortes orçamentários da educação brasileira. Aprovada em 2016 durante o governo do então presidente Michel Temer, a PEC congelou o teto de investimentos do governo federal em diversas áreas, incluindo a educação, por 20 anos. Henrique Meirelles, Ministro da Fazenda naquela época, afirmou que a medida era uma tentativa de redução de gastos do Estado para que o país pudesse prosseguir economicamente.
Dessa forma, em 2017 o Ministério da Educação (MEC) teve 4,3 bilhões de suas despesas bloqueadas para cumprir a meta fiscal daquele ano e o limite imposto pelo teto de gastos. Já em abril de 2019, o MEC anunciou um bloqueio 30% da verba de todas as universidades e institutos federais, com a possibilidade de reintegração deste valor no segundo semestre, caso a arrecadação de impostos voltasse a crescer. A decisão ocorreu após críticas ao corte de verba feito somente na Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal da Bahia (Ufba), que foram palco de manifestações públicas e acusadas de “balbúrdia”por Abraham Weintraub, agora ex-ministro da educação.
“Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas. A lição de casa precisa estar feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking”, disse Abraham em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo sem esclarecer quais seriam os rankings.
Segundo a Unb, o bloqueio afetou cerca de 38 milhões do seu orçamento. Já a Ufba e a UFF, disseram que as justificativas do ministro não se aplicavam às universidades e que o bloqueio iria trazer graves consequências para as instituições.
Com este cenário, estudantes, professores e pesquisadores foram às ruas no dia 15 de maio de 2019, em 26 estados do país, em defesa da educação e pedindo a demissão de Abraham do MEC. Em viagem a Dallas, nos Estados Unidos, o presidente Bolsonaro questionou a legitimidade das manifestações. “A maioria ali é militante. Se você perguntar a fórmula da água, não sabe, não sabe nada. São uns idiotas úteis que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo das universidades federais no Brasil”, disse ele.
As manifestações seguiram no decorrer de maio e os cortes também ao longo do ano. Em setembro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou o congelamento de 5.613 bolsas de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, visando garantir o pagamento dos pesquisadores cadastrados e uma economia de R$37,8 milhões em 2019, de acordo com a Capes.
Em 4 anos, o Brasil reduziu os investimentos em educação em 56%, segundo o informativo técnico de Nº 6/2019 da Câmara dos Deputados e publicado pelo site UOL. Entre 2014 e 2018, o investimento em educação diminuiu de R$ 11,3 bilhões para R$ 4,9 bilhões. Em 2014, as despesas com ensino superior foram de R$ 39,2 bilhões e em 2018 caiu para R$ 33,4 bilhões. Já com a educação básica, o governo federal teve uma despesa de R$ 36,2 bilhões em 2014 e em 2018 de R$ 29,3 bilhões. A queda nas despesas foi ainda maior com o ensino profissional, sendo R$16,4 bilhões e R$11,9 bilhões, 2014 e 2018 respectivamente.
A previsão do orçamento para educação em 2021 não é diferente. Mesmo em um cenário pandêmico no qual as escolas precisam de investimentos para compra de álcool em gel e outros produtos de higiene, a previsão é de um corte de R$ 4,2 bilhões na pasta da educação. Além disso, as escolas podem ser afetadas com uma provável queda na arrecadação dos impostos municipais e estaduais, contabilizando menos R$59 bilhões para área, segundo dois estudos dos institutos Unibanco e Todos pela Educação apresentados pelo G1.
O MEC também irá cortar em 2021 cerca de R$994,6 milhões do orçamento das universidades e institutos federais, afirma a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). O valor representa uma queda de 17,5% nas despesas “não obrigatórias”, que são referentes às contas de água, luz, funcionários e serviços terceirizados, obras e programas de assistência estudantil.
Desde o início da pandemia, mudanças profundas aconteceram e foram aceleradas nos mais diversos setores, inclusive na educação. A migração abrupta das comunidades de aprendizagem para o universo digital trouxe à tona as desigualdades de um país que não investe e nem tem respeito pela educação. Diante deste cenário, o que esperar do futuro da educação brasileira?
Em sua coluna no Ecoa, da UOL, Débora Garofalo Assessora Especial de Tecnologias da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEE SP), professora da rede pública de ensino de São Paulo e uma das dez finalistas do Global Teacher Prize, o Nobel da Educação, afirmou que este é o momento de priorizarmos a educação. “Com tantos desafios, chegou a hora e a vez de priorizar a Educação! Chegou o momento de não cometermos erros do passado e priorizarmos a educação enquanto sociedade, a única arma que temos para transformar a vida de crianças e jovens!”.
A educação é um direito essencial e fundamental ao ser humano. Investir na educação é primordial para garantir que o indivíduo exerça sua cidadania e alcance o pleno desenvolvimento. Precisamos relembrar aos governantes que um país que investe em educação investe também em todos os outros setores. A educação abre portas, desenvolve o senso crítico e garante a dignidade de uma sociedade. Por meio dela, garante-se o desenvolvimento social, econômico e cultural de uma sociedade.
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