Patrícia Patrocínio; 02/12/2020 às 12:30

Case Carrefour: O que não fazer no gerenciamento de crises

Em comemoração ao dia das Relações Públicas preparamos a análise do caso de gerenciamento de crise da empresa que foi palco de mais um episódio racista

  Na véspera do dia da Consciência Negra, a rede internacional de hipermercados Carrefour foi o palco mais uma vez de um episódio bárbaro de racismo, João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos foi assassinado brutalmente por dois seguranças da empresa Vector que prestava serviços à varejista na capital gaúcha. Os envolvidos no espancamento são o policial militar Giovane Gaspar da Silva, de 24 anos, e o segurança Magno Braz Borges, de 30 anos, ambos indivíduos brancos.  

Extrato da Empresa 

   Crimes violentos e de cunho racista nas dependências da empresa internacional são reincidentes: No ano de 2009, cerca de cinco seguranças da rede de supermercados espancaram Januário Alves de Santana, funcionário da USP,  o argumento foi de que o homem teria sido confundido com um ladrão e roubado o seu próprio carro; em 2012, Jéssica Barros que trabalhava no setor de cartões da empresa acusou um cliente de agredi-la e ofendê-la com palavras racistas, ao comunicar que havia débitos que não foram pagos no cartão do homem, ele começou a chamar a funcionária de macaca;  no mesmo ano, a 6ª turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve condenação do pagamento de indenização por danos morais pelo Carrefour Comércio e Indústria Ltda., no valor de R$ 5 mil, devido à revista periódica realizada na bolsa de uma ex-empregada. De acordo com o ministro Maurício Godinho Delgado, relator do processo, ainda que, no caso, não tenha havido contato físico, a revista na bolsa expôs indevidamente a intimidade da mulher cuja a única justificativa pela qual era abordada era o seu tom de pele; ainda em 2012, Sylvia Barcellos foi xingada de “macaca” na frente de outros empregados e humilhada por conta da sua cor e gênero, durante 14 anos, a funcionária foi vítima de discriminação racial e assédio moral. Devido ao excesso de trabalho e ao tratamento desumano, ela adquiriu a chamada síndrome de esgotamento profissional e ficou incapacitada durante três anos. A doença foi comprovada por laudo psiquiátrico. E em março daquele ano, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) condenou a empresa Carrefour Comércio e Indústria Ltda., que recorreu a sentença na tentativa de diminuir a indenização da ex-funcionária; a enfermeira Sonia Maria também abriu representação criminal contra o Carrefour por ofensas raciais depois de tentar trocar um aparelho telefônico com defeito. Um dos agentes de segurança se aproximou e iniciou as ofensas ‘‘sua negra desgraçada, eu vou quebrar a sua cara!’’ disse Sônia em entrevista ao Portal Géledes. Depois da situação, a enfermeira ainda foi seguida com os filhos por três seguranças da loja e obrigada a ir para uma “salinha”; já em 2013, a Relações Públicas Manoela Gonçalves, foi seguida por um segurança dentro de uma das lojas da empresa. O caso foi registrado no 11° DP (Distrito Policial) como injúria, constrangimento ilegal e ameaça; em 2017, Leandro dos Santos registrou boletim de ocorrência contra um segurança do hipermercado que ergueu sua camiseta e o impediu de permanecer na área da empresa “porque podia ser confundido com um ladrão por ser negro e estar de calção e camiseta”; em 2019, Luís Carlos Gomes, deficiente físico, foi perseguido, encurralado e agredido pelo gerente de segurança em uma das unidades Carrefour, o motivo da agressão se deu por que Luís consumiu uma cerveja dentro da unidade; em setembro deste ano, a auxiliar de cozinha Nataly, foi demitida depois de denunciar racismo e intolerância religiosa cometida por outro funcionário. Ela foi surpreendida com a frase “só para branco usar” em seu avental. A mensagem foi assinada e escrita por Jeferson Emanuel Nascimento, que de acordo com documentos internos do supermercado, já havia sido acusado de racismo e agressão contra outra colega de trabalho; Há 13 dias, João Alberto foi espancado até a morte por dois seguranças que prestavam serviço à empresa.  No total, a varejista soma 10 crimes registrados em um período de 11 anos, e a morte de João Alberto parece ser o resultado desse acúmulo.

 O que tem em comum em todas essas situações descritas?

  1. Todas as vítimas são negras;
  2. Todas ocorreram dentro das dependências dos supermercados da empresa;
  3. Todas se tratam de crimes motivados por esquemas mentais racistas;
  4. Em maior parte dos casos foi praticado por agentes de segurança de empresas que prestavam serviços para o grupo Carrefour. O que evidencia uma lógica de operação ou o despreparo de avaliação por parte da empresa internacional que é a contratante dessas prestadoras;
  5. Em quase todas as situações o Carrefour se posicionou em nota. 

Um problema da administração e uma crise de imagem anunciada

     A rede de supermercados tem no seu histórico: crimes contra a integridade física de pessoas negras, assim como casos de homofobia e violência contra animais.  Segundo o Manual de Gestão de Crise e Imagem da ABRAPP: o ponto principal da gestão de crise é a prevenção, por meio da identificação de sinais internos ou externos que anunciam a sua chegada. Para Charles F. Hermann (apud LERBINGER, 1997):

“para que exista uma crise, é preciso que haja essas três características: os administradores devem reconhecer a ameaça (ou risco) e acreditar que ela possa impedir (retardar ou obstruir) as metas prioritárias da organização, devem reconhecer a degeneração e irreparabilidade de uma situação se eles não tomarem nenhuma ação e devem ser pegos de surpresa. Essas três características da crise refletem estas descrições: subitaneidade, incerteza e falta de tempo”

    As ideias deixam claro que nem toda crise é imprevisível. Existem as que apresentam indícios, deixam rastros e pistas que vão ocorrer. E essa que o Carrefour está enfrentando deixou corpos, deixou traumas, condenações e um longo extrato de situações recorrentes. Com base no que Charles F. Hermann definiu como crise e nos posicionamentos da empresa em todas as situações, os administradores da rede internacional de supermercados, não só estavam cientes dos acontecimentos como não deram a devida atenção ao problema de ter situações reincidentes como essas, que ameaçam a reputação e imagem da empresa. Na segunda-feira, 23 de novembro, o grupo registrou a maior queda de mercado.

No pronunciamento mecânico, falta humanidade.

Após a brutalidade do assassinato de João Alberto, a varejista francesa, em nota oficial na manhã do dia 20 de novembro, pronunciou: 

O Carrefour Brasil expressa seu profundo pesar e consternação. Nenhum tipo de violência e intolerância é aceitável. O Carrefour Brasil está cooperando plenamente com as autoridades para garantir que os envolvidos sejam levados à justiça. O contrato com a empresa de segurança vai ser quebrado. O funcionário responsável pela loja no momento do incidente será dispensado. Por respeito à vítima, a loja será fechada. Entraremos em contato com a família do Sr. João Alberto.  

Em outro pronunciamento oficial, a empresa foi em horário nobre na rede nacional de televisão com o seguinte posicionamento, assista abaixo:

   Em ambos posicionamentos, existem problemas. Na primeira nota oficial, existe um tom de terceirização de responsabilidade, em nenhum momento o Carrefour se coloca como participante do processo que culminou na morte de João Alberto, tendo em vista o histórico da empresa no Brasil, nem mesmo chega a mencionar o crime no texto. É como se a culpa fosse apenas da empresa contratada para prestar o serviço e que nada teria a ver a contratante no processo, mesmo que a brutalidade ocorra sob as vistas de mais de 10 funcionários ligados diretamente a empresa e nenhum deles faz nada para evitar. Já no segundo comunicado para os canais de televisão, o  CEO Noël Prioux e o Vice-Presidente de Recursos Humanos João Senise, aparecem lendo um texto no ponto, como uma mera reprodução, em nenhum momento dos seus pronunciamentos utilizam o termo assassinato para classificar o fato ocorrido, ao invés disso, decidem usar as expressões como: ato criminoso, agressão, um caso, como fosse algo isolado e não o reflexo de uma empresa que vem acumulando escandalos desse viés. 

   Os materiais veiculados não transmitem a empatia necessária para essa situação e nem mesmo conversam com o contexto da realidade racial brasileira. O CEO da empresa repete palavras que claramente são engessadas, falta expressão, falta aproximação, falta sinceridade sobre o entendimento dos problemas raciais brasileiros. O mínimo que uma empresa pode fazer em uma situação de crise é humanizar seus posicionamentos e isso não aconteceu. Quando a reputação de uma organização como o Carrefour é colocada em cheque, comunicar da maneira correta é essencial.  

Pensar novos modelos de gestão de crises

    Desde que o crime ocorreu, o Carrefour tem feito uma série de medidas, ações e pronunciamentos, alimentado a imprensa com conteúdo de suas decisões e atitudes já realizadas ou futuras. Diante de toda a brutalidade que assistimos, a empresa não poderia fazer menos que isso: encher o público de informações. No entanto, para uma empresa que repetidas vezes se posicionou através de notas em relação aos casos de racismo que esteve envolvida, o que demonstra estar ciente dos ocorridos, a varejista francesa, talvez tenha que prestar mais atenção para o tamanho do problema que enfrenta, uma vez que é reincidente e tem vinculada a si, a imagem de ser alheia à vida, em especial, a vida negra em um país que mais da metade da população é afro-brasileira.

   Analisar a maneira como o Carrefour está reagindo a crise é mais importante do que observar como ele está agindo para resolvê-la. Até hoje, sempre existiu muita retórica e pouca prática no discurso da empresa. Talvez essa seja a hora da empresa diminuir as palavras e promessas de ação e apresentar resultados, é isso que o público espera ver e que revela a pesquisa realizada pelo Instituto Kantar Ibope sobre as principais transformações e tendências do comportamento do consumidor no pós-quarentena: 75% dos consumidores entrevistados desejam enxergar o que as marcas estão fazendo para mudar o contexto social em que estão incluídas.

Pensar no profissional de Relações Públicas 

  Para o Carrefour nesse momento, um profissional de Relações Públicas é muito importante, mas um RP negro, é essencial, especialmente no cenário em que a empresa se encontra e que construiu para a sua própria imagem e reputação em relação às pautas raciais e outras questões. O planejamento preventivo, uma boa comunicação com os públicos, a mediação de conflitos, a recuperação e alinhamento do discurso, são atividades de um RP e que a empresa carece. Na matéria o RP negro, as marcas e o avanço da pauta racial, apresentamos a necessidade que todas as empresas e não só as que se encontram em situações de crise como a do Carrefour tem em relação a presença profissional de um Relações Públicas negro nos setores relacionados.

  Por fim, alguns contextos de crises têm realidades complexas demais para serem sintetizadas ou caberem em cartilhas de “siga esses passos”, escolher não gerenciar uma crise também é gerenciamento e colocando em foco como a empresa vem agindo, acredito que chegou a hora de romper com a ritualística dos manuais engessados de gestão de crise e repensar novos modelos de comunicação. E em homenagem a este dia, quero deixar minha profunda admiração a todos os profissionais de Relações Públicas que através da comunicação fazem as mudanças que precisam ser realizadas nos seus espaços. 

 

 

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