Patrícia Patrocínio; 14/11/2020 às 11:30

O RP negro, as marcas e o avanço das pautas raciais

As marcas precisam preparar os seus terrenos para o avanço da pauta racial

O coronavírus fez emergir uma série de transformações no mundo e trouxe à tona diversas questões que a sociedade adiava. E foi nesse cenário improvável e caótico que um problema que se arrastava por séculos eclodiu como plano de fundo, ganhando força e espaço na reflexão pública. As mortes de George Floyd em Minneapolis e de João Pedro no complexo do salgueiro deram início a uma verdadeira limpeza da poeira que se acumulou por baixo de nossos tapetes por todos esses anos: a discussão sobre a questão negra ganhou espaço na mídia mundial e desencadeou protestos contra o racismo e a brutalidade policial em diversos países, inclusive o Brasil.

Sabe-se que o Brasil foi construído a partir de um extenso histórico de crimes raciais mas em nosso caso, o mito da democracia racial difundido no século XIX deixou sequelas estruturais e por muitos anos as autoridades e a população de nosso país sofriam com uma cegueira seletiva. No entanto, a manifestação de nossas marcas históricas ganhou expressão na medida em que o tema ganhou força nos EUA e nas telas do mundo inteiro. Evento esse que não só trouxe grandes lições como também colocou em xeque como as marcas brasileiras e, em especial, as regionais trabalham com esse tema. Uma vez que a discussão adentrou diversas esferas da sociedade, ganhando espaço na reflexão pública, não há como regressar; as pessoas discutirão cada vez mais e a comunidade negra que no Brasil, soma 54% da população e movimenta R$ 1,7 trilhões na economia por ano, segundo o Instituto Locomotiva, ficará ainda mais articulada.

As marcas precisam preparar os seus terrenos para o avanço da pauta racial, uma vez que o posicionamento por nota de repúdio em posts nas redes sociais com frase “somos contra o racismo” já não basta, é preciso ter coerência e ir além do superficial.

As empresas no foco e guiando o futuro da sociedade

Toda a América Latina vem vivendo nos últimos anos um cenário de desconfiança nas autoridades e instituições públicas, o que direciona o foco da sociedade para as empresas. Na pesquisa realizada em 2018, pela agência global Edelman, líder em consultoria de Relações Públicas que tinha como objetivo investigar como as marcas podem conquistar, fortalecer e proteger relacionamentos com seus consumidores, 41% dos brasileiros entrevistados afirmaram que as empresas são o caminho para um futuro melhor, 63% indicam que elas são uma força poderosa e efetiva de mudança e que podem fazer mais que o governo solucionando os problemas sociais. Esses dados demonstram que antes mesmo da pandemia essa tendência pelas empresas guiando o futuro da sociedade já era crescente e no atual contexto, esse crescimento acelerou.

No estudo In Brands We Trust? de 2019, com recorte nacional, realizado pela líder de consultoria em Relações Públicas que verificava o nível de confiança e credibilidade nas marcas, 63% dos brasileiros responderam que toda marca tem a responsabilidade de se envolver em pelo menos uma questão social que não tenha relação direta com seus negócios. Em 2018, a mesma agência global também destacou em um de seus levantamentos que 69% dos brasileiros afirmam consumir baseados na posição de empresas sobre questões relevantes para a sociedade.

O momento que estamos vivendo é sem dúvidas um divisor de águas, a comunicação mercadológica, que já aspirava transformações, durante a pandemia viu uma tendência ganhar ainda mais espaço entre os consumidores: a busca por empresas que representam os valores de seus públicos e solucionem os males sociais. O Instituto Kantar Ibope divulgou no mês de junho um estudo sobre as principais transformações e tendências do comportamento do consumidor no pós-quarentena: 75% dos consumidores entrevistados desejam enxergar o que as marcas estão fazendo para mudar o contexto social em que estão incluídas. O tempo das empresas se envolverem com a evolução das estruturas sociais das comunidades a sua volta já chegou!

Mas como as marcas vem se posicionando sobre as questões raciais?

O Brasil e diversos países cuja a herança histórica é escravocrata discutem hoje mais do que em qualquer outro momento a temática racial, um problema que muitas vezes foi postergado por essas nações. E de que forma as empresas estão se posicionando em relação a essa discussão e se colocando como agentes de transformações estruturais? 

É comum que haja um tempo de reação para as marcas se posicionarem sobre pautas raciais devido a questões burocráticas ou o medo de se posicionar de forma errada. Entretanto, esse tempo de reação está sendo cada vez mais exigido pelos públicos, principalmente em comparação a outras empresas. No mês de agosto viralizou na internet o vídeo em que Matheus, um entregador, é agredido e ridicularizado em um condomínio de luxo, e um dos agressores chegou a se referir a ele como “lixo” e que como um homem negro Matheus teria inveja da cor da pele do agressor que era branco. A Rappi, um dos principais aplicativos de entrega, começou uma conversa pelo Twitter com as empresas Uber Eats e o iFood para tentar identificar o sujeito que agrediu e tomar as devidas providências. A atitude da empresa teve uma grande repercussão, não por ser a primeira a se posicionar de maneira a buscar providências e em defesa de Matheus, mas pela atitude de trazer para a conversa os aplicativos concorrentes. O posicionamento firme, coerente e rápido da empresa gerou resultados muito positivos com os seus consumidores. 

No entanto, vale ressaltar que antes de adotar posicionamentos externos ou mercadológicos, é preciso envolver os colaboradores, promover o debates que gerem ações e legitimidade para o posicionamento, pois se posicionar porque um assunto está em alta no momento e não saber de fato o que pessoas negras estão discutindo, é esvaziar o sentido do discurso e isso não se sustenta mais. As empresas que se aliarem de forma autêntica e verdadeira às questões raciais ganharão destaque entre os consumidores, serão lembradas de forma positiva e podendo utilizar as suas colaborações como memória corporativa. Mas, para isso, elas precisam planejar bem suas ações e metas que demonstrem claramente o que estão fazendo.

O profissional de Relações Públicas negro e sua importância no pós-pandemia

O profissional de Relações Públicas negro não só tem propriedade sobre pautas raciais, como sua posição na hierarquia social possibilita uma análise ampliada das camadas e de indivíduos dessa sociedade, o que permite traçar as estratégias de comunicação mais coerentes e consistentes para o posicionamento da marca, não só na luta antirracista como em outras lutas sociais, contribuindo para a construção do diálogo e criação de práticas efetivas de relacionamento da organização com seus variados públicos. 

O profissional da comunicação é aquele que enxerga o ambiente à sua volta, e o de relações públicas, em especial, é o que consegue enxergar não só o ambiente, mas também os públicos. O RP tem a capacidade de enxergar o outro. As marcas, no entanto, precisam começar a considerar a comunicação inclusiva: o papel imprescindível  do profissional negro de relações públicas, cuja sua presença em uma posição de decisão na comunicação de uma organização já gera um impacto transformador para a mesma. A promoção da diversidade não só cria um ambiente mais diverso como também favorável às discussões de cunho social. Seja na contratação de profissionais negros para cargos não subalternizados ou dando voz a esses colaboradores, o fato é: a presença do profissional negro de Relações Públicas favorece a discussão de pautas sociais no ambiente de trabalho.

Mas como trabalhar o tema racial no Norte do país?

Quando olhamos para a região Norte e fazemos o recorte racial, nos deparamos com um problema ainda maior. Devido à história muito particular desta região, a identidade negra é mais diluída do que em outras partes do país; se fôssemos pensar onde poderia ter nascido o mito da democracia racial, certamente não estaria errado que apontasse para o Norte. Caboclo, Cafuzo, mameluco, moreno… Todos esses termos utilizados para não fazer referência ao negro não passam de uma grande estratégia colonizadora de dividir para conquistar, que imperou por aqui. A invisibilidade do negro no Norte é uma pauta que vem sendo discutida e ganhando espaço entre a comunidade Afroameríndia e que certamente uma hora também vai pautar discussões em toda essa região e fora dela. 

Posso afirmar que como uma negra nortista, existimos e mesmo que ainda seja difícil traçar todos rumos na comunicação no pós-pandemia, com certeza o profissional de relações públicas negro será essencial.  

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