Quando falamos sobre a trajetória de mulheres na política, precisamos mergulhar na história e retornar ao tempo das revoluções industriais, esse é um ponto de partida importante para entender o percurso até a tomada de nossa cidadania. Dessa forma, o surgimento das indústrias inaugurou um período de transformações no mundo, a transição de pessoas do campo para as cidades em busca de oportunidades nas empresas incentivou a formação de uma nova organização de vida. É nesse cenário que a figura da mulher é atribuída às funções domésticas, como cuidar da casa e dos filhos, enquanto os maridos saem para trabalhar e tratar dos assuntos ‘públicos’, o que incluía questões de ordem política e econômica. Foi a partir desse momento que os estigmas sobre a fragilidade feminina e a necessidade de proteção masculina foram reforçados ao ponto de ainda serem presentes nos dias atuais.
No contexto inicial da luta pela cidadania feminina brasileira, é importante destacar que naquela época, o país ainda era colônia de portugal e vivia economicamente de um modo de produção escravista. Começando pela saída majoritariamente de mulheres brancas de casa, enquanto mulheres negras escravizadas realizavam as funções domésticas. Inclusive, é o movimento abolicionista a primeira luta social ao qual mulheres brasileiras encontram a chance de participar de questões públicas. Embora ocupassem um papel secundário, que não as permitia opinar nos debates e decisões, apenas da arrecadação de fundos por meio da venda de flores nas portas de igrejas e cemitérios. Muitas mulheres enfrentavam sol e chuva para desempenhar essas ações, em parte, isso demonstrava um autosacrifício, visto como uma atitude elogiável pelos homens. Coelho e Batista explicam no artigo ‘A História da Inserção Política da Mulher no Brasil: uma Trajetória do Espaço Privado ao Público’, que esse tipo de atitude ainda é possível de ser identificada nos dias atuais, por exemplo, quando a maioria dos cargos de decisões pertencem a homens e as mulheres permanecem na militância.
A partir de 1870, começaram a aparecer no Brasil iniciativas jornalísticas que promoviam debates na sociedade brasileira acerca da educação, divórcio, atuação profissional e direito ao voto para mulheres. Fora do país, as pautas femininas estavam em efervescência, alguns jovens brasileiros que foram estudar nos Estados Unidos voltaram ao Brasil defendendo o acesso de mulheres à Ciência, um período agitado que somado às iniciativas jornalísticas já existentes possibilitaram avanços tímidos. Como resultado dessas movimentações, em 1891, durante as discussões de elaboração da primeira constituição republicana foi levantado a questão do sufrágio feminino, e simultaneamente vetado pelos parlamentares. Os argumentos apontados foram vários, destacam-se o abalo dos alicerces da família e a glorificação do lar como um lugar que ‘infelizmente’ os homens não poderiam aproveitar. No entanto, nestas assembléias estavam presentes Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca, futuros presidentes do Brasil, e que defendiam o voto feminino.
Apesar de vetada, a ideia de mulheres na política não foi abandonada, repercutindo na sociedade brasileira e abrindo espaço para o surgimento de um movimento sufragista tão forte quanto aquele que já existia na Europa desde o final do século XIX.
A essa altura, se faz necessário ressaltar a questão da interseccionalidade, uma categoria teórica desenvolvida no Brasil pela pesquisadora Carla Akotirene que articula múltiplos sistemas de opressão, neste caso, os de raça, gênero e classe. Para ela, é preciso considerar nas discussões feministas as particularidades das mulheres de cor, como por exemplo, o fato do machismo, o racismo e o preconceito de classe serem opressões indissociáveis para essas mulheres. Portanto, falar sobre a trajetória feminina na política nacional é um desafio, especialmente, quando brasileiras partem de pontos tão distintos, apesar de compartilharem o mesmo gênero.
O feminismo negro surge entre os anos de 1960 a 1980 com a criação da National Black Feminist Organization (Organização Nacional Feminista Negra) nos Estados Unidos. No Brasil, ele chega no final dos anos 70, após uma forte manifestação de mulheres negras, que não se viam representadas nos movimentos femininos da época. A falta de um olhar interseccional desses grupos, não os permitiu enxergar o que estava bem à sua frente, enquanto mulheres brancas buscavam igualdade de direitos, mulheres negras lutavam para sair primeiramente da posição de subordinadas e sofriam opressão tanto de homens como de outras mulheres.
Não chega a um século, mais precisamente 89 anos, que mulheres passaram a exercer seu direito à cidadania, para nossa sociedade a ideia de desempenharmos plenamente funções públicas ainda é uma ameaça e precisa ser combatida, por razões sexistas e racistas que estruturam o pensamento social. Para muitos especialistas, o grau de amadurecimento de democracias pode ser confiavelmente avaliado pelo nível de participação de mulheres no legislativo, quanto mais cargos forem ocupados por mulheres na cúpula do governo, mais igualitário tende a ser aquele país – ou, pelo menos, mais preocupado em reduzir as diferenças.
Acompanhe a trajetória feminina na política brasileira
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- 1910 : Leolinda Daltro e Gilka Machado, fundaram o Partido Republicano Feminino. No entanto, nenhuma delas era elegível, ou sequer eleitora.
- 1922: Bertha Luz organizou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (F.B.P.F.), filiada à International Woman Suffrage Alliance.
- 1929: Alzira Soriano de Souza, a primeira prefeita eleita no Brasil, Rio Grande do Norte, cidade de Lages.
- 1932 – decreto n. 21.076 do Presidente Getúlio Vargas, mulheres conquistam o direito do voto.
- 1933: Carlota Pereira Queiroz é a única mulher eleita entre 214 homens para a assembleia constituinte da nova constituição.
- 1934: Antonieta de Barros, educadora, jornalista e escritora, filha de escrava, é a primeira mulher negra eleita no Brasil.
- 1971: Eunice Michiles, primeira mulher amazonense a ocupar uma cadeira no Senado Federal.
- 1981: Médica, Laélia Alcântara foi a primeira senadora negra no Brasil.
- 1985: Ocorre a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
- 1989: Ocorre a primeira candidatura de uma mulher para a presidência da República. A candidata era Maria Pio de Abreu, do PN (Partido Nacional).
- 1994: Roseana Sarney foi a primeira mulher escolhida pelo voto popular para chefiar um estado, o Maranhão.
- 1995: Lei nº 9.100/95, que previa que cada partido ou coligação deveria reservar uma cota mínima de 20% das vagas para a candidatura de mulheres.
- 1997 : Lei nº 9.504/97, que passou a obrigar que cada partido ou coligação reservasse o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo a cargos legislativos, a fim de aumentar a presença feminina no cenário político brasileiro.
- 2009: Lei n° 12.034, a primeira minirreforma eleitoral tornando obrigatório que cada partido ou coligação preencha o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
- 2010: Dilma Rousseff foi a primeira mulher presidente do Brasil.
- 2012: Cármen Lúcia, foi a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral.
- 2015: A Lei nº 13.165 determinou que as legendas utilizassem 20% do seu tempo de propaganda gratuita no rádio e na TV para incentivar a participação feminina na política. A mesma norma tornou obrigatória, em ano eleitoral, a campanha do TSE para estimular a candidatura de mulheres.
- 2016: Marielle Franco é eleita vereadora.
- 2018: Joênia Wapichana a primeira mulher indígena eleita Deputada Federal e Erica Malunguinho a primeira mulher trans eleita para a Assembleia Legislativa;
- 2018: Marielle Franco é assassinada e o Brasil vê o despertar do “Efeito Marielle”, um dos mais importantes símbolos do combate à violência política no Brasil e inspiração para outras candidatas negras.
Dados sobre a participação feminina na política do Brasil
No Mapa ‘Mulheres na Política de 2020’, produzido pela Organização das Nações Unidas e a União Interparlamentar que mede a proporção de mulheres em cargos políticos. De 193 países, o Brasil ocupa a posição 140 no ranking mundial de representatividade feminina. Nos últimos 4 anos, as eleições realizadas em 2018 foram determinantes para que o país subisse 14 posições nessa lista, batendo o seu recorde de representação feminina na Câmara dos Deputados, com o número de cadeiras ocupadas por mulheres alcançando 15%.
Além disso, representantes de grupos que nunca estiveram presentes em parlamento, ou que sempre foram sub-representados passaram a compor o cenário político brasileiro, como no caso de Joênia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita como deputada federal e Erica Malunguinho, a primeira mulher trans eleita para a Assembleia Legislativa. Apesar dos avanços, vale lembrar que a eleição de 2018, manteve o Brasil no ranking dos países com as piores taxas de representação de mulheres no parlamento e também confirmou a presença de Jair Bolsonaro na presidência da república.
Cruzando dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a participação da mulher nas eleições de 2020 com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, PNAD; Mulheres formam 51,8% da população brasileira e representam 52,5% do eleitorado e apenas 33,3% do total de candidaturas. Já no caso das mulheres negras e indígenas ou trans apenas 2% do Congresso Nacional e menos de 1% na Câmara dos Deputados é composta por essas pessoas. Em uma pesquisa realizada pela Procuradoria da Mulher no Senado sobre a Equidade de gênero na política brasileira em 2016, 37% das mulheres afirmaram que já foram discriminadas por causa de seu gênero no ambiente político.
Os dados apresentados demonstram a sub-representação e o abismo em relação à participação feminina diversa no eleitorado brasileiro, mesmo em um tempo com transformações sociais correntes no mundo todo, e com mulheres assumindo diferentes funções e papéis. As resistências atuais expressam parte das dificuldades construídas historicamente. É por isso que ainda hoje, a inserção das mulheres na atividade política, em cargos eletivos ou não, continua sendo bastante restrita.
Desafios para a permanência
Embora as discussões sobre pautas feministas estejam cada vez mais presentes nas telas e nas vidas de inúmeras pessoas, ao compararmos com o tamanho da repercussão das estratégias usadas para desqualificação da mulher ao longo da história, podemos considerar que o processo de adoção de ideias que emancipam e valorizam figuras femininas por parte da sociedade em geral, ainda é lento, frente às transformações que precisam ser conquistadas. Entendemos que a política é um lugar que remonta a herança das ideias dos grupos hegemônicos que utilizam a opressão como meio de sua manutenção no poder e que cuja reparação de desigualdades representa uma forte ameaça a esse poder.
Desse jeito, a luta pela emancipação feminina no Brasil é longa e contínua, o preconceito e a relutância por um futuro equitativo andam juntos, na tentativa de frear a ocupação das esferas de poder por mulheres. Por isso, a permanência feminina na política é um desafio de superação de obstáculos constantes, que vão desde lidar com as múltiplas jornadas, o consentimento social que homens sejam liberados das tarefas domésticas e da responsabilidade de serem pais à luta por visibilidade dentro dos próprios partidos que não lhes tratam como prioridades. É importante lembrar que as mulheres conquistaram os mais diversos espaços, inserindo-se em todos os ramos de atividade.
O problema de todos os cargos em masculino
Nos últimos 10 anos, a participação feminina na política amazonense obteve pouquíssimos avanços, mulheres continuam em situações de sub-representação, necessitando de políticas e campanhas que incentivem cada vez sua presença, possibilitem condições de sua permanência no cenário público e nas esferas de poder. Grada Kilomba diz que a língua, por mais poética que possa ser, tem uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. Talvez, um dos importantes passos e também um dos maiores desafios para que não só mulheres possam adentrar ainda mais o campo da política, como algumas discriminações possam ganhar a reflexão da população, transformando o pensamento, seja em relação ao nosso vocabulário e as terminações que reforçam lugares e papéis sociais. Para Kilomba “uma sociedade que vive da negação, ou até mesmo da glorificação da história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas.”
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