Isabella Botelho; 16/03/2021 às 10:00

A moda brasileira como expressão da diversidade cultural

Conversamos com as amazonenses Carolina Otília, Cecília Silva, Melissa Maia e Sarah Marinheiro sobre os desafios da moda no Norte

Certa vez, Luís XIV afirmou que a moda é o espelho da história. E de fato, assim como a arte, a moda tem a capacidade de refletir o período em que vivemos. Embora, por muito tempo, pesquisadores e estudiosos tenham a tratado como um objeto de estudo raso, sem muitas razões para investigação, ao longo do desenvolvimento humano, a moda se mostrou relevante. Especialmente, na solução das dúvidas sobre o que fomos e pensamos enquanto indivíduos e sociedade.

Na França, ela era tão estimada que pediram ao rei Carlos VII a criação de um “ministério da moda”. Atualmente, claro, essa instituição não faria sentido algum, mas isso não significa que a importância dela diminuiu. Devemos considerar que a moda não se limita a vestimentas, tendo a capacidade de invadir todas as áreas de consumo e instâncias da sociedade. Ao lado disso, seu objetivo segue o mesmo princípio dos inúmeros movimentos modernistas do final da idade média,a incansável busca pelo o novo e o rompimento com o conservador.

Um elemento de identidade e uma das várias faces da moda

Estudiosos da área explicam que a utilização de roupas pelo ser humano está atrelada à necessidade manifestada de nossos ancestrais de autopreservação. Dessa forma, as peles de animais utilizadas para cobrir o corpo a 600 mil anos a.C, foram os primeiros rascunhos das atuais vestimentas. Na Mesopotâmia, o aparecimento da tecelagem foi essencial para o desenvolvimento da  produção têxtil. E o Egito, o responsável pela atribuição de significados às roupas, revelando o  papel fundamental que ela cumpria na identificação e distinção dos representantes de poder máximo.

Milhares de séculos se passaram, e a indústria desse setor avançou, tornando a moda um produto de massa, com capacidade de alcançar públicos de diferentes classes sociais. O seu crescimento ao decorrer dos séculos permitiu que muitas pessoas fizessem o seu uso, ainda que nem todas deem conta de acompanhar o fluxo de mudanças e tendências por razões financeiras. Fato é que a moda tornou-se um instrumento de transformação e uma estratégia de mobilidade social. 

Sobre a relação com a identidade, ao longo de nossas vidas ficamos expostos a diversas situações que nos ajudam a construir o que somos, e como parte dessa construção, as roupas tornam-se manifestações de nossas individualidades, o resultado da mistura das experiências que absorvemos. Desse jeito, como objeto que cobre o corpo, ela expressa essa mistura, como a figura do que somos, determina as relações que estabelecemos com o mundo. 

“A roupa é uma casca, não define quem você é, mas te mostra. Apresenta teus gostos, a que grupo você pertence ou proteja pertencer” – Sarah Marinheiro, estilista amazonense. 

Grandes acontecimentos na história da moda

Após o fim das Guerras Mundiais, a moda evolui significativamente, a cada década seguinte a esses acontecimentos um estilo e expressão diferentes carregados de valor e simbolismo ganham a cena. Desde o início utilizada para romper padrões, ela favorece a retomada da liberdade de expressão que tanto foi reprimida pelos regimes ditatoriais da época. Uma das marcas registradas desse período, foram os tons sóbrios que as roupas femininas assumiram, devido ao luto vivenciado. No entanto, a transformação no vestuário femino não ficou restrita apenas aos tons. 

Com a situação de muitas mulheres saindo de casa para trabalhar durante as guerras, os cortes e modelagens de suas roupas também ganharam formas diferentes, o que desencadeou reflexões em relação ao lugar que a mulher ocupa na sociedade. A partir desse momento, as saias diminuíram, mulheres passaram a usar calças, o que era permitido somente aos homens. Desse jeito, a moda demonstra expressamente o seu poder de intervir e até mesmo regular comportamentos da sociedade.

Referências da moda brasileira

O Brasil é um país multicultural e sua moda deriva da união desses diferentes elementos. Nossas dimensões continentais e variações climáticas geram expressões típicas de cada região e que juntas demonstram a pluralidade de estilos e sentidos que representam a identidade do brasileiro. Buscando exaltar essa particularidade, a empresária Cristiana Arcangeli, organizou em 1993, a primeira semana de moda do País, intitulada de ‘Phytoervas Fashion’. 

 O evento impulsionou a criação de uma nova identidade brasileira de moda que não só valorizava a manifestação de nossa mistura cultural, como também inaugurava as produções de designers conterrâneos. O objetivo do evento era lançar estilistas brasileiros no mercado e divulgar a moda do Brasil. Desse jeito, em oito edições da cerimônia mais de 60 carreiras de estilistas brasileiros foram projetadas no cenário internacional do setor. Com isso, o caminho para o surgimento do maior evento de moda nacional estava aberto, nascia assim a São Paulo Fashion Week. Após esses acontecimentos, o conceito de ‘moda nacional’ ganhou força e iniciativas brasileiras dessa área ficaram cada vez mais conhecidas.

Vale destacar que o ‘Phytoervas Fashion’ tinha o propósito de desmistificar algumas ideias internacionais a respeito da moda brasileira, abrindo espaço para novas formas de expressão da nossa diversidade cultural, sem estigmatizar. 

Expressões da moda nortista

A Região Norte é uma das mais miscigenadas do país. Nossa população é formada pela mistura de indígenas, negros e imigrantes, em grande parte europeus. Essa junção cultural entre povos tão diferentes é o ponto de partida das muitas manifestações tradicionais presentes nos estados da região. 

Especificamente quando falamos de moda, nossa história se expressa através do uso de estampas, grafismos, cores vivas e tecidos leves, principalmente por conta do clima. O toque artesanal também se destaca por aqui, como parte da memória afetiva que herdamos dos povos tradicionais da Amazônia. Desse jeito, bijuterias, bolsas, sandálias e chapéus feitos à mão e com materiais derivados da natureza são comuns na composição da moda nortista. 

“As pessoas esperam muito que moda seja algo fora da caixinha, mas sempre fazem referência às passarelas. Ao meu ver,  a moda vai além, tem a ver com a cultura e com as manias e jeitos de cada local. Por exemplo, Manaus e o calor, a gente tem um jeito único de se vestir, mais confortável, leve e colorido. Além disso, temos muitos talentos tanto na parte de produção de moda quanto de estilistas, mas que frente à região sul e sudeste não recebem o devido reconhecimento”, afirma Maria Cecília Silva, visual merchandising amazonense, em entrevista à Mercadizar.

Atualmente, Cecília trabalha diretamente com o interior de lojas, sendo responsável pela montagem de looks que irão para as vitrines. Para isso, ela estuda a coleção que vai entrar, alinhando com as tendências e público da loja. “Produzo moodboards e saio em busca de tudo que envolve o styling da vitrine: calçados, acessórios e perucas. Então, minha inspiração vem da coleção que o cliente me apresenta e sempre estou vendo desfiles, acompanhando tendências”. 

Morando em São Paulo, para onde se mudou com o objetivo de cursar Produção de Moda  no Senac e buscar oportunidades de estágio, ela explica que um dos seus principais desejos é estudar e voltar à Manaus para contribuir e fortalecer o mercado da moda local. “Temos muitos talentos tanto na parte de produção de moda quanto de estilistas, mas que frente às regiões sul e sudeste não recebem o devido reconhecimento. Ainda pretendo fazer mais alguns cursos e voltar pra terrinha com conhecimento para dividir. A moda tem infinitas possibilidades e precisamos reconhecer isso no Norte”, afirma. 

Assim como ocorre em outros setores da região, os desafios de fazer moda no Norte vão desde a falta de incentivos e recursos financeiros ao alto custo de matérias-primas. Aos 24 anos, a designer manauara Carolina Otília é formada em Moda na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), e tem sua própria marca. Morando também em São Paulo, ela conta que um dos principais desafios para quem quer empreender na área na região Norte é justamente o alto preço das matérias-primas e os poucos fornecedores. 

“Trabalhar com Moda no Brasil é complicado porque necessita de um investimento inicial grande. É caro abrir uma marca e fazer tudo direitinho e muitas vezes isso reflete no preço e as pessoas nem sempre estão dispostas a pagar um valor mais alto por uma moda autoral e artesanal, porque não nos foi ensinado a dar valor pra isso. É um problema estrutural. Além disso, a procura por fornecedores é sempre cansativa. Na região Norte, por exemplo, é quase impossível… Produzo tudo aqui em SP, os fornecedores que me atendem são todos daqui e sei que não acharia tudo o que eu preciso na região Norte. Essa falta de mão de obra e de fornecedores encarece e dificulta ainda mais a produção dos designers do Norte”, explica.

Além disso, há a escassez de cursos profissionalizantes. A maioria das graduações desta especialidade nos estados da nossa região são particulares, o que cria barreiras de acesso e até mesmo prejudica o desenvolvimento da área, como explica Sarah. “Fiz o vestibular para uma faculdade particular e quando saiu o resultado, veio o impasse: não tinha dinheiro para custear. Na época estava desempregada. Por sorte, abriu um programa de bolsa de estudo do estado no mesmo período, e eu me inscrevi. Fui no primeiro mês de aulas sem ter pago nada, e sem saber se realmente conseguiria a bolsa, um mês depois foi liberado o resultado e eu conquistei um percentual no abatimento da mensalidade e com a ajuda da minha família paguei o restante. Então as maiores dificuldades e desafios enfrentados por mulheres nortistas na moda se resumem a escassez de incentivos para a  nossa produção.”

Sarah já participou de algumas iniciativas importantes para o setor local, como o grupo ‘Cabedal de Criadores’ de onde surgiu a ideia da primeira semana de moda do Estado.  Trabalhando no ramo desde os 15 anos, em 2013, formou-se em Design de Moda pelo Ciesa. Para ela “A moda  tem a incumbência de libertar e não aprisionar”. Atualmente, atua como designer de moda, produtora, figurinista, ilustradora e docente. 

Como cidadãos nortistas nossa existência é atravessada pelo contato com a natureza e a urbanidade, embora alguns ainda não saibam que no Norte o espaço urbano é tão presente quanto o natural.  Crescemos em meio aos tons verde e cinza, e desenvolvemos uma relação complexa com eles. E seja por isso ou pela memória afetiva herdada de nossos ancestrais, que reproduzimos em nossas formas de ser/estar no mundo essa relação. 

Por outro lado, em relação ao mercado da moda nortista, o desenvolvimento é especialmente definido pelo estilo sustentável, pensado para o futuro e altamente representativo. Nossas riquezas não se encontram só nas florestas e recursos naturais, nossa cultura e povo são expressões únicas de uma história que tem a diversidade como premissa principal, como afirma Carolina.

Dos artistas do Norte que conheço, um ponto principal que existe em comum entre eles, é a carga cultural que carregam. Não conheço um designer do Norte que produza algo sem colocar um pouco da sua cultura e da sua história. Isso é um diferencial imenso e deveria ser mais valorizado”. 

Sobre a mensagem que a moda nortista está encarregada de passar através de suas representações. Para Melissa Maia, ela está relacionada com a observação tanto de pessoas quanto do momento político que vivemos, é dessa forma, que a estilista e figurinista consegue  trazer uma narrativa em suas produções que possibilite transformação. 

“Como uma mulher transexual sempre penso ‘Como eu posso me expressar?!’, ‘Como a minha arte pode mudar o olhar das pessoas ao terem contato com algum trabalho meu?!’. Seja de moda ou figurino, eu sempre busco o máximo de representatividade, até quando faço meus croquis”.

Já para Designer Sarah Marinheiro, suas roupas carregam uma história de respeito e resgate ancestral. Minhas inspirações são meus antepassados, a cultura africana e indígena, nossa fauna e flora. O que quero falar através das roupas é como quero contar a história. Daí tiro um tema e esmiúço até ficar tangível, alguns milhares de croquis depois. Sempre pensando na melhor forma de ficar o mais sustentável possível, respeitando os corpos”.

Sem dúvidas, como tudo no Norte, a vontade de existir supera as adversidades, a resistência contra a dominação desde os tempos coloniais por partes dos povos originários e das comunidades quilombolas reverberam na essência de todas as coisas que são criadas na região. A moda nortista é uma das inúmeras expressões que ostentam o que temos de melhor: nossa pluralidade; seja nos elementos culturais ou nas potências criativas de nossas manifestações. 

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