Sabemos que os meios de comunicação de forma geral ajudam na construção de identidades e da opinião pública. Muitas vezes, o indivíduo em contato com diferentes culturas passa a incorporar novas formas de sociabilidade. Assim, seu agir e pensar, por exemplo, passam a ter influência daquilo que o mesmo vai consumindo ao longo do tempo.
As séries são importantes participantes do processo de construção das identidades. Um dos objetivos dos seriados é trazer para a sociedade novas formas de ser e estar influenciando na construção do cidadão. Questões sociais, econômicas, políticas e culturais são assuntos vistos em algumas séries, a exemplo de House of Cards, produzida pela Netflix, que retrata as manobras de um político com desejo de conquistar o poder. Assim, de um jeito diferente e atrativo, elas passam a trazer novas roupagens e questões contemporâneas.
O crime e o combate ao crime têm sido um dos principais temas da produção ficcional desde finais do século XIX até aos dias de hoje. Se personagens como Sherlock Holmes ou Hercule Poirot se destacaram na literatura policial pelo seu poder de observação e inteligência, a ficção televisiva policial, predominantemente norte-americana, teve períodos no pós-II Guerra Mundial em que o combate ao crime é feitoa por “heróis” solitários com uma tendência para contornar as regras.
Os novos “heróis” destas narrativas policiais sugerem a emergência de novos modelos de policiamento e novas formas de combate ao crime. Nas séries policiais de hoje, são representados, em sua grande maioria, o trabalho de investigação criminal e o dia a dia de profissionais que trabalham na área. É provável que as audiências possam construir, a partir destas narrativas, um imaginário da justiça, das tecnologias de identificação por perfis e dos próprios agentes de investigação que, embora tenha uma aparente semelhança em algumas técnicas, ignora as contingências das suas aplicações no mundo real e nos tribunais ou os contextos atuais de produção.
A ONG de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos Color of Change divulgou, em janeiro deste ano, a primeira edição de um estudo sobre questões de representação em séries criminais estadunidenses para analisar este impacto da ficção na realidade. Intitulado Normalizing Injustice: The Dangerous Misrepresentations that Define Television’s Scripted Crime Genre, o relatório põe em evidência uma série de arquétipos e tipos de histórias geralmente utilizados em programas do gênero que ajudam a distorcer a visão do público sobre temas como raça, gênero e o sistema de justiça do país.
“Estas representações fictícias são construídas com base em falsas percepções sobre o sistema de justiça e como este se correlaciona com questões de raça e gênero enquanto ignora muitas realidades importantes”, afirma o relatório. Isso, por consequência, pode levar espectadores a fazerem constatações equivocadas sobre os aparatos públicos e como eles podem ser reparados, “colocando a opinião pública contra esforços necessários e críticos de reforma do sistema”.
Os danos, no entanto, não se restrigem apenas ao causados pelas narrativas em sim, mas também são causados questões de produção e diversidade dentro do setor criativo da indústria. De acordo com o estudo, o gênero de séries criminais é o menos diverso dentro da programação da TV estadunidense: 81% dos showrunners são homens brancos e 78% dos roteiristas das séries analisadas são brancos. Não apenas os negros estão em meros 9% dos scripts, mas 20 das 26 produções analisadas pela Color of Change contam com nenhum ou apenas 1 roteirista negro nas salas de criação.
Entre as descobertas feitas pela pesquisa, está o fato de que a maioria dos programas analisados apresentam injustiças do sistema sendo cometidas por “homens da lei” sem nenhuma consequência e, portanto, sendo normalizados. Quase todos os seriados analisados também criam a impressão de que reformas não são necessárias no sistema de justiça, além de muitas usarem personagens não brancos para passar a sensação de validação de mal comportamento, seja no apoio ou prática de tais ações.
O relatório aponta ao menos oito séries de televisão do gênero como capazes de proporcionar mudanças neste campo, incluindo NCIS, Máquina Mortífera, Elementary, The Blacklist, Blindspot, Blue Bloods, Chicago P.D. e Law & Order: Special Victims Unit.
Metodolgia e resultados do estudo
O estudo foi resultado da análise de 353 episódios de 26 séries diferentes que foram produzidas entre março de 2017 e julho de 2018 para canais de TV ou serviços de streaming. O processo de seleção dos episódios ocorreu de forma r aleatória e abrangeu entre 70 a 80% de cada temporada. Os capítulos foram estudados com base em três métricas distintas:
- “Uma razão que compara o número de ações injustas cometidas pelo profissional de justiça enquadrado como herói com a quantidade das mesmas atitudes dos vilões”;
- “Um índice que cataloga as séries que mais retratam atos injustos sem reconhecê-los como tais ao mesmo tempo que mantém um número alto de personagens não brancos como heróis”;
- “Um ranqueamento de integridade racial que ordena as séries sobre a razão entre o número de personagens não brancos com a porcentagem de criativos não brancos na sala de roteiristas do programa”.
Com 70 páginas de análise sobre os dados coletados, o relatório conclui com recomendações severas a executivos e produtores de reconhecer a situação como um problema sistêmico, seja pela convocação de auditores externos da indústria ou pela necessidade da promoção de maior diversidade no gênero. “Nós agora sabemos o quão perigoso pode ser o papel da televisão roteirizada quando o assunto é distorcer a compreensão das pessoas sobre crime, raça e justiça”, escreve Rashad Robinson, presidente da Color of Change, na divulgação do estudo, sobre o qual também acrescenta que estes programas “encorajam o público a rejeitar reformas e apoiar o pior tipo de comportamento dos policiais, promotores e outros oficiais – práticas que destroem vidas de pessoas negras”.
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