Patrícia Patrocínio; 08/07/2022 às 12:00

O que não é crime no Brasil?

O Mercadizar conversou com as advogadas Carol Amaral e Isadora Ribeiro após uma série de acontecimentos relacionados à violência sexual contra mulheres 

Nos últimos meses uma série de acontecimentos relacionados à violência sexual, exposição de dados e violação de direitos circularam nas mídias. O  mais recente foi o caso de Klara Castanho, que ilustra tantos outros casos sem repercussão. A fim de esclarecer todas as circunstâncias que envolveram a situação da atriz e falar sobre a importância de manter condutas profissionais, o Mercadizar conversou com as advogadas Carol Amaral e Isadora Ribeiro. 

Iniciamos nossa entrevista perguntando a Carol Amaral, que atua como presidente da comissão de igualdade racial e Conselheira Titular na OAB/AM, como funciona o processo legal de entrega voluntária de crianças e recém nascidos para adoção e quais são as ações que tornam esse processo ilegal. A advogada esclareceu: 

“A entrega voluntária para adoção é um instituto relativamente novo. Ele foi criado com a Lei 13.509 de 2017 e dispõe de uma série de etapas que vão desde a decisão dos genitores ou da genitora e o nascimento da criança, até a manifestação de vontade expressa de entrega voluntária para adoção. Esse processo visa resguardar o melhor interesse da criança e o sigilo de todos os dados das pessoas envolvidas, em especial a genitora ou os genitores e a criança. O que torna a entrega de uma criança ilegal é o não cumprimento dessas etapas, o que a gente chamada de adoção à brasileira, que é, por exemplo, quando uma pessoa pega uma criança para criar por meio de uma adoção direta e não passa por procedimentos legais de verificação, sejam eles de aptidão judicial das pessoas que estão adotando ou de compatibilização dos perfis entre a criança e os adotantes.”

Ainda em relação às etapas do processo de entrega voluntária, Carol explicou: “Elas envolvem a participação de outros profissionais, e vão desde a elaboração de relatórios e do encaminhamento para a rede pública para acompanhamento não só do pré-natal, mas também para acompanhamento psicológico e social. Todos esses procedimentos visam garantir que os genitores tenham plena ciência do que estão fazendo e que essa decisão é a melhor para eles e para a criança. Há também a etapa de busca de família extensa, em casos que o genitor queira assumir ou a genitora queira entregar para a família do genitor.”

Sobre a busca por família extensa, a advogada reforça que a maioria das situações de entrega voluntária para adoção ocorrem com mães solos ou vitimas de violência sexual: “É via de regra: a maioria são mães solos, vitimas de violência sexual que buscam a entrega voluntária para adoação, tendo em vista que não existe uma maneira de criar a criança em um ambiente saudável, sem a perpetuação da violência.”

Em relação ao caso da atriz Klara Castanho, Isadora Ribeiro, especialista em Direito de família e sucessões, afirmou: “Klara agiu corretamente e observando todos os critérios da Lei nº 13.509 (lei de adoção). Ao contrário do que muitos imaginam, a gestante que dispõe seu filho para adoção não comete crime. Porém, de outro modo, a mãe que desampara ou expõe seu filho a perigo comete o crime de abandono de recém-nascido, descrito no artigo 134 do Código Penal.”

O caso da atriz ganhou repercussão após a publicação de uma carta aberta em que ela conta ter sido estuprada e que engravidou após a violência. Sua revelação ocorreu após uma sucessão de fatos lamentáveis por parte de diversos profissionais da saúde e da comunicação, que a expuseram de forma absurda e criminosa. Sobre a conduta desses profissionais, Isadora apontou: 

“Quanto ao vazamento dos dados das vítimas de abusos sexuais, é certo que confronta diretamente o comando constitucional, que dispõe a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas como direitos fundamentais. No caso de Klara Castanho, o que foi noticiado pela imprensa, que os dados teriam sido vazados para jornalistas pela  própria equipe médica que trabalhou na internação e no parto da atriz. Surgem dúvidas quanto à responsabilização do hospital e dos trabalhadores envolvidos no escândalo. Vamos por pontos: 1) o hospital possui a responsabilidade de respeitar a privacidade e intimidade dos seus clientes; 2) os funcionários do hospital responsáveis pelo vazamento das informações respondem por violação de segredo profissional (art.  154 do código penal), além da possibilidade de responder administrativamente e perder a licença.”

Ainda sobre a conduta dos profissionais envolvidos no caso de Klara, Ribeiro completou: “Temos em vigor a chamada ‘Lei do minuto seguinte’ (Lei 12.845/2013), que estabelece garantias a vítimas de violência sexual, dentre elas o atendimento imediato pelo SUS e amparos médico, psicológico e social. O profissional da saúde é obrigado, por lei, a notificar o atendimento de mulheres vítimas de violência. A Lei nº 10.778/2003 obriga os serviços de saúde, tanto públicos como privados, a notificar casos de violência de qualquer natureza contra a mulher. Observe que a notificação é obrigatória, e não facultativa. Além disso, devem ser respeitados os direitos à dignidade da pessoa humana, o sigilo de informações e o amparo psicológico em todas as unidades de atendimento sob pena de Omissão e Negligência.”

Por outro lado, em relação aos casos de violência sexual no Brasil, dados inéditos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostram que uma mulher sofreu violência sexual a cada dez minutos no Brasil, no primeiro semestre de 2021. De acordo com o levantamento, de janeiro a junho de 2021, foram 26.709 vítimas. Comparado com o mesmo período do ano anterior, o número representa um aumento de 8,3%, quando foram registrados 24.664 casos. Ainda segundo o Anuário de Segurança Pública, produzido pelo Fórum e publicado em julho deste ano, cerca de 60% das vítimas desse tipo de violência são crianças e adolescentes de até 13 anos.

Recentemente, o caso de uma menina de 11 anos vítima de estupro, mantida pela Justiça de Santa Catarina em um abrigo para evitar que fizesse um aborto autorizado, repercutiu na imprensa nacional e internacional. A juíza Joana Ribeiro, autora da decisão, chegou a comparar o pedido de autorização por parte da família da menina, para a realização do aborto de forma legal, a um homicídio.

Vale lembrar que ao menos sete em cada dez adolescentes de dez a 14 anos que engravidaram como consequência de crime de estupro foram violentadas por um familiar ou um parceiro íntimo. As informações constam em estudo preliminar do Ministério da Saúde a partir de notificações contabilizadas em três bancos de dados da pasta: o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, o Sistema de Informações sobre Mortalidade e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação.

Nesse sentido, pergutamos a Carol Amaral como funciona e quais são os casos legais de aborto no país. A então Presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB/AM esclareceu:

“No Brasil, o aborto é permitido em apenas três casos: gravidez que coloque em risco a gestante, gravidez por violência sexual e casos de anencefalia fetal. A gente precisa contextualizar que o nosso código penal é muito antigo, de 1940, então é bastante arcaico e não dialoga com as discussões mais recentes com relação a liberdade sexual e liberdade da mulher em relação ao próprio corpo. Então existe uma lógica e ideologia cristã que estão muito presentes em nosso código penal.”

Além disso, a advogada pontuou a importância de não apenas falar sobre a descriminalização do aborto, mas também reiterar a urgência de legalizarmos esse procedimento em uma perspectiva de saúde pública:

“Aborto é uma questão de saúde pública. Mesmo havendo criminalização do aborto, ele não deixa de existir. O que deixa de existir é um aborto seguro, e abortos inseguros vitimam mulheres em vulnerabilidade social, em sua maioria mulheres negras e periféricas. Então, não existe uma justificativa da legislação amparada em pesquisas ou etc. para a criminalização do aborto. O que existe é uma ideologia cristã que impõe às mulheres essa maternidade compulsória. Ninguém deve ser obrigado a levar adiante uma gravidez que não deseja, para a qual não se planejou ou não está preparado. Mais uma vez, essa lógica cristã não deveria prevalecer sobre a lei ou sobre o direito da mulher de engravidar quando quiser e se quiser; é o direito de escolha das mulheres. Mais do que falar sobre a descriminalização do aborto, precisamos falar sobre sua legalização em uma perspectiva de saúde pública.”

 

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