Não é difícil perceber a variedade de palavras de origem indígena que usamos com frequência em todo o Brasil. Elas nomeiam da fauna à flora, de objetos a lugares. “Caatinga”, “ipê”, “mandioca”, “arara”, “tucano”, “tamanduá”, “Copacabana”, “Amapá” e “Pará” são alguns dos vários exemplos de palavras originadas em línguas indígenas que foram incorporadas ao nosso vocabulário, e existem graças à cultura e à vasta variedade linguística dos povos originários.
Mas as línguas indígenas – do Brasil e do mundo – correm o risco de caírem em desuso e serem extintas, abrindo espaço para a discussão sobre a necessidade de sua valorização.
Apesar de haver divergências sobre o número exato de línguas indígenas existentes e faladas no Brasil, diferentes pesquisas mostram que a variedade chega às centenas. De acordo com o Museu da Língua Portuguesa, existem hoje cerca de 200 línguas indígenas faladas no Brasil. O museu afirma que no ano de 1500, quando ocorreu a chegada dos colonizadores, havia mais de 1,2 mil línguas e dialetos no território brasileiro.
Já a pesquisadora Luciana Storto, na obra “Línguas Indígenas: Tradição, Universais e Diversidade”, afirma que o Brasil tem atualmente cerca de 150 línguas indígenas faladas, e que antes da colonização portuguesa elas somavam entre 600 e mil. Segundo a autora, a tendência é que as línguas indígenas faladas no país desapareçam completamente nos próximos 50 ou 100 anos, algo causado, entre outros fatores, pelo número baixo de falantes.
Desafios para a continuidade das línguas
O relatório “Diversidade linguística indígena: estratégias de preservação, salvaguarda e fortalecimento”, produzido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e que conta com a participação de indígenas de diferentes povos, afirma que muitos dos desafios e dificuldades em manter línguas indígenas em pleno uso estão relacionados à escolarização, aos meios de comunicação dominantes e à adoção de práticas políticas e religiosas que geram o abandono da língua. Outras dificuldades para a continuidade de línguas indígenas são ainda o racismo estrutural e o preconceito.
Alguns fatores apontados pelo Iphan que dificultam o uso e o fortalecimento das línguas indígenas incluem, ainda: falta de material de comunicação em língua indígena, interferência religiosa e imposição religiosa com violência, falta de investimento em pesquisa linguístico-cultural no país, perda de territórios indígenas, violência do estado contra os povos indígenas, glotocídio e etnocídio, preconceito linguístico, e ausência de educação indígena em universidades e escolas, entre muitos outros.
Importância da preservação
Entre os motivos que mostram a importância da preservação das línguas indígenas está o fato de que a riqueza cultural dos diversos povos originários brasileiros é muitas vezes passada oralmente entre as gerações. Assim, essas línguas representam muito mais do que apenas formas de expressão e comunicação.
A língua de um povo está diretamente ligada a origem, identidade, valores éticos ancestrais, religiosidade, conhecimentos medicinais e da fauna e flora do território, além de conhecimentos sobre o sistema próprio de organização social. E todos esses aspectos destacam a importância cultural da preservação das línguas.
“A nossa preocupação como liderança dos povos indígenas é que essas línguas têm que prevalecer e continuar fazendo parte da vida dos povos indígenas, porque, com as línguas, nós mantemos nossas tradições e nossas culturas vivas. Se não fizermos isso, um dia serão extintas, e o povo morre com toda a sua história”, explica Maximiliano Correa Menezes, indígena Tukano, em entrevista ao Mercadizar.
Há alguns anos a discussão sobre o tema vem ganhando um pouco mais de força. O ano de 2019 ficou conhecido como o “Ano Internacional das Línguas Indígenas (IY2019)”, em ação lançada oficialmente pela UNESCO. A mesma instituição promove no período de 2022 a 2032 outra ação, intitulada “Década Internacional das Línguas Indígenas”, com o objetivo de chamar a atenção mundial para a situação crítica de perigo de desaparecimento na qual muitas línguas indígenas se encontram, mostrando a necessidade de seus usos e sua preservação para gerações futuras.
Para que as diversas línguas indígenas resistam é necessário que medidas de fortalecimento sejam tomadas socialmente, e sejam também apoiadas por indígenas e não indígenas.
O relatório do Iphan aponta uma lista de fatores que favorecem o uso e o fortalecimento das línguas indígenas, como, por exemplo: garantir a demarcação de territórios indígenas; inserir a história de cada povo no currículo escolar; desenvolver oficinas sobre políticas de educação indígena nas aldeias; valorizar as artes indígenas como parte do aprendizado; dar espaço para o uso das diferentes línguas nos canais de mídia nacionais; produzir material linguístico escrito e oral, sobretudo de línguas minorizadas; permitir acesso a materiais didáticos em suportes físicos e digitais; fomentar o sentimento de orgulho da identidade étnica; conscientizar não indígenas sobre a valorização das culturas indígenas; formar docentes indígenas por etnia, e muitos outros.
“As línguas têm que ser continuadas, faladas e escritas nas escolas, porque uma língua falada traz muitas informações e histórias para serem contadas. Histórias que levarão as futuras gerações a conhecerem os valores culturais daquele povo. O município de São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, é o primeiro a reconhecer as três línguas indígenas mais faladas no município – Tukano, Baniwa e Nheengatu –, através da Lei 145/2002”, destaca Maximiliano.
Além disso, é importante destacar que a valorização de línguas indígenas passa ainda pela problemática social de falta de apoio, respeito e visibilidade às lutas e reivindicações dos povos originários no Brasil, de modo que tanto as línguas quanto os povos indígenas como um todo não têm seu protagonismo nos espaços sociais garantido.
A atual situação de quase extinção de diversas línguas indígenas é também um reflexo do estado de constante ameaça sob o qual os povos indígenas se encontram.
“Temos que valorizar nossas línguas para que elas perpetuem durante muitos e muitos anos. Somos povos que temos nossas línguas, histórias e tradições, e somente falando nossas línguas poderemos contar as nossas verdadeiras histórias”, finaliza Maximiliano.
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