Isabella Botelho; 30/06/2022 às 11:00

A saúde mental LGBTQIAP+ não cabe no modelo hétero cis normativo

Violências estruturais contribuem para o adoecimento mental de pessoas LGBTQIAP+

Nos últimos anos, muito se tem falado sobre a importância do cuidado com a saúde mental, principalmente diante da pandemia do coronavírus. No entanto, um recorte se faz necessário: precisamos discutir a saúde mental da população LGBTQIAP+. Para falar sobre o assunto, conversamos com o psicólogo clínico e pesquisador Bernardo Veiga. 

Inicialmente, Bernardo explica que, para abordar o tema, é necessário entender a saúde num contexto geral. Durante muito tempo, a saúde foi entendida como a ausência de doenças, logo, era considerada saudável uma pessoa que não apresentasse sinais de qualquer tipo de enfermidade. No entanto, este conceito passou a não ser o suficiente para representar todas as particularidades e acontecimentos que envolvem a saúde. Por isso, com os anos e o avanço constante dos estudos, este conceito mudou e, em 1964, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente ausência de afecções e enfermidades”.

Entre as principais mudanças, passou-se a considerar a qualidade de vida como um item que contribui para a saúde física e mental. Definida como “a percepção do indivíduo de sua inserção na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”, a qualidade de vida inclui aspectos como o acesso a direitos básicos (alimento, moradia, saúde, educação, etc).

Diante disso, ao pautar a saúde mental da população LGBTQIAP+, precisamos também observar a história: afinal, ela tem muito a contribuir com as estruturas nas quais nossa sociedade se desenvolve. Analisando o passado não tão distante do nosso país, é impossível não mencionar as violências sofridas por pessoas LGBTQIAP+ que se perpetuam até os dias atuais. É inegável que esta população sofre reiteradas formas de violência em decorrência de uma sociedade que se construiu a partir de um modelo hétero cis normativo, a qual não se pode se desconsiderar aspectos como racismo, machismo e misoginia. 

A partir deste modelo que nossa sociedade se organiza, Bernardo explica que nossa subjetividade se constrói e isso tem grande impacto na criação de políticas públicas, desde as de segurança até as de saúde, porque se tem uma sociedade que pensa em serviços voltados para atender às necessidades desse modelo entendido como “padrão”. Então, teremos uma estrutura excludente. E onde ficarão aqueles que não estão abarcados nesse modelo? À margem da sociedade. Não terão acesso a direitos básicos, como pode-se observar na  população LGBTQIAP+ e em muitas outras como, por exemplo, a população negra, quilombola, indígena e pessoas com deficiência, afetando sua qualidade de vida e, por consequência, sua saúde mental. Afinal, como ter uma saúde quando não há garantia e o cumprimento de direitos, ainda que estes sejam previstos por lei? 

A existência desse padrão hétero cis normativo desconsidera as particularidades, anula vivências e exclui essas pessoas, como explica o psicólogo:

“Só pode ser homem ou mulher, dentro de um modelo binário genero e a única orientação sexual  que se é compreendida e aceita é a heterossexual. Se o entendimento é este, todas as outras pessoas que não se encaixam nesse modelo serão compreendidas como problemáticas. As consequências para quem se encaixa neste dualismo binário de gênero podem ser violentas, e na maioria das vezes o são: só observar os modos como mulheres masculinas ou homens femininos são socialmente hostilizados. Se elas não fazem parte desse modelo, elas não serão abarcadas pelas políticas públicas de saúde mental.”

A violência pode começar, ainda cedo, dentro do próprio núcleo familiar. À medida que a pessoa LGBTQIAP+ cresce e adentra novos espaços, infelizmente, está suscetível ao preconceito e à opressão: seja na escola, na universidade, no trabalho ou nos ambientes de convívio social. 

Ou seja, as pessoas LGBTQIA+ convivem diariamente com LGBTfobia, falta de oportunidades e de direitos básicos, desemprego, discriminação, violência e sentimentos constantes de medo e vulnerabilização.

“Esses fatores vão influenciar diretamente no processo de adoecimento. Quando eu não tenho garantias de direitos e não tenho acesso a serviços, isso vai gerar um impacto emocional e psicológico”, afirma Bernardo. 

Entre os principais transtornos emocionais observados estão a ansiedade e a depressão, uma consequência dos eventos estressores aos quais pessoas LGBTQIAP+ estão suscetíveis – este tipo de estresse, inclusive, tem uma nomenclatura: é o estresse das minorias.

Atualmente, o  Brasil é um dos países com o maior índice de ansiedade e depressão do mundo. Vale ressaltar que este dado diz respeito à população num geral, mas, quando fazemos um recorte para a população LGBTQIAP+, estes dados são ainda mais alarmantes, explica Bernardo: 

“Para pessoas LGBTQIAP+, esse risco é aumentado. Esse aspecto de adoecimento vai chegar muito maior e de uma maneira muito mais intensa a essas pessoas. Existe, então, um risco dobrado para essa população. Logo, nós não podemos deixar de citar estes determinantes sociais para falar sobre saúde mental.”

Para exemplificar isso, de acordo com o relatório Diagnóstico LGBT+ na pandemia 2021, realizado pelo coletivo Vote LGBT, 54,92% das pessoas entrevistadas foram classificadas com um risco de depressão de nível mais grave. Ainda segundo o documento, esta porcentagem sobe para 80% quando são consideradas pessoas sofrendo com qualquer nível de depressão. Quando não acompanhados e tratados por meio da ajuda profissional, esses quadros podem evoluir para pensamentos suicidas e até mesmo a consumação do ato.

“O alto índice de suicídios entre a população LGBTQIAP+ tem a ver com o aspecto social. Essa pessoa sofreu várias violências, essas violências são internalizadas, e a pessoa não vê outra saída para o seu sofrimento; ela se vê sem perspectiva. A única coisa que ela entende é que aquele sofrimento só pode ser resolvido por meio da morte; tirar a própria vida é a única solução para lidar com o sofrimento. O suicidio é materialização de um sofrimento intenso, por conta de uma sociedade que a rejeita, discrimina e a estigmatiza.”, explica Bernardo. 

Ainda pouco discutida e uma questão de saúde pública, a pauta da saúde mental da população LGBTQIAP+ é urgente e precisa ser visibilizada e pautada durante todo o ano, não apenas no mês de setembro, que é marcado pelo Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio. É necessário que a mídia se posicione a favor desta pauta, divulgando informações, dados e orientações especializadas, trazendo profissionais da área para falarem sobre o tema. Este é um dos primeiros passos para conscientizar e educar a população sobre a saúde mental LGBTQIAP+. 

Bernardo ainda chama a atenção para a importância da constante luta da sociedade pela garantia de direitos à população LGBTQIAP+, e das pessoas LGBTQIAP+ e representantes ocuparem cada vez mais espaços, pois somente assim poderão ser criadas políticas inclusivas e que respeitem a todos.

“A gente precisa que essas pessoas estejam ocupando esses espaços para garantia de direitos, pois o direito não está dado, ele é conquistado. Ele é objeto de disputa de classe, e que seja ela representada pelo poder popular, por pessoas LGBTQIAP+.”

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