Ensaio sobre Cultura, Políticas Públicas e COVID-19

Por
Francis Madson
Há 4 anos atrás
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“As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso, abrem as cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque funcionam os nomes ou emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”. (Michel Foucault, As Palavras e As Coisas, pg. 13, 1999).

Para construir um Ensaio sobre Cultura, Políticas Públicas e COVID -19 é inevitável realizá-lo a partir da perspectiva histórica no objetivo de convidar o leitor a perambular pela periclitante história das políticas públicas da cultura no Brasil.

Há quatros marcos fundamentais para entender o processo de maturidade em relação à políticas públicas da Cultura no Brasil, cada qual sustentado por posições ideológicas e conceitos sobre a própria cultural.

O primeiro marco, trata-se da chegada da família real, em 1888, que criou de forma embrionária, “políticas públicas da cultura” com a fundação de instituições de proteção aos bens culturais; segundo, o período Ditadura Militar e a criação do Ministério da Cultura; o terceiro marco está no período da redemocratização do Brasil, com a com a Lei 7.505/86 , conhecida como Lei Sarney, na qual a cultura é entendida como princípio de interesse social, configurado na Carta Magna de 1988. Logo depois, a perspectiva neoliberal de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e seus projetos do neoliberalismo; e, finalmente, o quarto marco, com as políticas públicas do período Lula (a partir de 2003), que vai desencadear na criação do Plano Nacional de Cultura (2010). Os dois últimos marcos são o interesse desse Ensaio.  

Após a redemocratização do Brasil, o Estado exerceu um papel fundamental em fomentar e financiar as ações culturais em todo o território. Para fazê-lo, foi necessário criar políticas públicas afirmativas e efetivas para resolução de questões sociais, políticas, culturais e políticas no âmbito nacional.

No âmbito da cultura, para isso,  ações administrativas, criação de fundos e processos de seleção de Projetos foram desenvolvidas. É neste momento que a Lei Sarney, a primeira Lei de Incentivo Cultural do país. Como funciona? A partir da Lei Sarney, qualquer cidadão pode ter isenção fiscal do Imposto de Renda através de doações, patrocínios e apoios a iniciativas culturais, cada qual com uma porcentagem específica.

Nesta perspectiva, o Brasil entendia a Cultura – o setor cultura e o desenvolvimento como estrutura positivista de progresso. O que parecia ser uma ação positiva do Estado na criação de políticas públicas, apresentou-se, também, como desvio da função do Estado em promover e financiar a cadeia produtiva da cultura no país. Mas como? Eu explico: O neoliberalismo revistado de Margaret Thatcher (1980) minimizou direitos trabalhistas, privatizou as Estatais, fortaleceu a moeda e taxou quaisquer cidadãos com imposto único, “Poll tax”. Na compreensão ideológica de Estado, a cultura deixaria de ser financiada através de políticas públicas aparentemente voltadas à Cultura, a priori, mas que se evidenciou a medida do passar do tempo em problema.

No Brasil, o período equivalente e fortemente influenciado pela perspectiva neoliberal será os Governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Segundo o artigo “A Trajetória das Políticas Públicas de Cultura no Brasil” publicado na Revista Cadernos NAEA (v. 17, n. 1, p. 25-46, jun. 2014) [1]“ao assumir a presidência da República no início dos anos 1990, Fernando Collor de Melo dá início ao que se poderia chamar de desarticulação das ações políticas na área cultural. O MinC, criado em 1985, foi extinto em 1990 e recriado em 1992.Foram extintas as antigas FUNARTE, a Fundação Nacional Pró-Memória, a Fundação Nacional Pró-leitura, a Fundação Cinema Brasileiro e a EMBRAFILME”.

Além disso, o Presidente Collor propôs duas mudanças: a primeira, a criação do PRONAC – Programa Nacional da Cultura e o incentivo a projetos culturais, mais conhecido como Mecenato; e a segunda, a extinção da Lei Sarney de Incentivo, que foi reformulada e rebatizada como Lei Rouanet em homenagem Sérgio Paulo Rouanet  – Secretário de Cultura da presidência.

Logo depois, Fernando Collor foi deposto do cargo de presidente. Mas ficou a de Fernando Henrique Cardoso continuar as ações no país a partir de uma ‘agenda” neoliberal para a Cultura.  Neste período, tivemos dois avanços, o primeiro um PNC (Programa Nacional de Cultura) com três possibilidades, o Fundo Nacional da Cultura (FNC); os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART); e o Mecenato.

O cenário utópico de financiamento estava relativamente arrumado no Brasil. Contudo, os projetos neoliberais e as ações de incentivo produziram protagonistas e coadjuvantes, Empresas Privadas e Estado, respectivamente. Quando você retira o protagonismo do Estado em equilibrar a relação entre artistas, produtores e empresas, as empresas privadas, orquestradas pelos marketeiros e setores de marketing assumem os processos de seleção dos projetos que devem ou não ser atingidos pela Lei. Desta forma, projetos e iniciativas, que não correspondam ao plano de marketing e construção da imagem da empresa não conseguem avançar nas etapas do fomento. 

Para garantir incentivo pelo Fundo Nacional de Cultura é necessário que o projeto corresponda a vários critérios, entre eles, formação, conteúdo, preservação, cultural, histórico, patrimonial, intercâmbio, história, memória e etc. O PRONAC e a Lei Rouanet desenvolveram-se em diretrizes coesas e coerentes, contudo, quando o Estado entrega parte do processo de seleção às empresas privadas alguns projetos serão selecionados em detrimentos de outros.

As “políticas públicas” no espectro neoliberal no Brasil correspondem de 1990 a 2002 até a primeira Eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (2003) e, a partir desse momento, com a presença de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura passamos a ter avanços significativos na Cultura. A postura do Ministério da Cultura previa ênfase na abrangência das ações e democratização. Percebe-se aqui novamente uma mudança de perspectiva ideológica e conceitual acerca de Cultura que vai de encontro aos projetos neoliberais da Era Collor-Cardoso.

A administração de Gil a partir do conceito antropológico da Cultura garantiu as pautas políticas da Cultura mais complexidade, com foco em diversidades e ampla difusão no país, mas, também, diversos desafios devido à extensão territorial e os inúmeros Brasis dentro do Brasil com aspectos simbólicos, sociais, políticos e econômicos singulares que precisariam de um plano que  definisse novas formas de administrar, fomentar,  e estimular as produções culturais com visão multifocal e diversa.

Por isso, precisamente em dezembro de 2010, através da Lei 12.343/10 é aprovado o Plano Nacional de Cultura. O que é o Plano Nacional? Segundo o site oficial do governo (pnc.gov.br) “O Plano Nacional de Cultura (PNC) é um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias, ações e metas que orientam o poder público na formulação de políticas culturais. Previsto no artigo 215 da Constituição Federal, o Plano foi criado pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Seu objetivo é orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil”.

O Plano Nacional da Cultura é um documento vasto com inúmeras diretrizes que auxiliam municípios e estados na construção das suas políticas públicas. Atualmente, no próprio site do PNC podemos verificar que milhares de municípios e dezenas de estados não estão com seus planos de estaduais de cultura ativos. É fundamental que estejamos uníssonos e coesos na consolidação do plano nacional da cultura para proteção do próprio setor garantindo por Lei as suas funções de fomento à produção dos bens culturais e a diversidade cultural.

A partir de maio de 2016, Dilma Rousself foi afastada do cargo de Presidenta e, logo depois, o Michel Temer elegeu 22 ministros para “ocupar” os cargos nos ministérios, entre eles, Marcelo Calero, que ficou à frente do Ministério da Cultura, antecedendo Juca Ferreira. Vale lembrar que o Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura e voltou atrás após duras críticas incorporando-o ao Ministério da Educação. Após essa ação, os espaços da Funarte,e Iphans foram ocupados como ação política prevendo, talvez, o início do desmonte das políticas públicas na cultura no país. A partir desse ponto, a Cultura Brasileira e toda sua cadeia produtiva estaria afetada com as decisões do Governo Temer e, mais adiante, ao Governo Bolsonaro.

O ápice do desmonte acontece após as eleições de 2018, na qual a ala reacionária da política brasileira construiu a imagem do artista como “vândalo” “marginal”  e “desrespeitoso”, mas sabíamos que esse comportamento fazia parte do plano político focado em “fake news”. Com o anúncio da lista dos ministérios, o Ministério da Cultura, se tornou Secretaria Especial da Cultura, tendo secretários apedeutas como Roberto Alvim, Regina Duarte e Mario Frias que vão em direções completamente opostas à figuras com Gilberto Gil e Juca Ferreira que pensavam a Cultura como política pública.

Em relação ao COVID– 19, essas ações que foram retiradas do setor tiveram impacto significativo, apesar do “sem expressão” projeto Repirarte – da Funarte, criado no intuito de minimizar os impactos da pandemia no Setor Cultural. É válido ressaltar a luta de artistas, da Dep. Federal Benedita da Silva e Jandira Feghali em relação a Lei 14.017 – Lei Emergencial da Cultura, que garantiu 3 bilhões para o setor. É fundamental que nosso leitor entenda que o recurso destinado à Cultura dentro da Lei 14.017 já era previsto no orçamento da União para o Setor.  

As políticas públicas para a Cultura no Amazonas não atingiram patamar de compreensão, apesar do Plano Nacional de Cultura federal prever diretrizes objetivas para municípios e estados participarem do projeto federal. É fundamental, também, entendermos a tenra idade da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (ManausCult) que avançou, por exemplo, em ações de fomento via editais (Conexões), projetos culturais e (eventos) como Paço a Passo, além do apoio a outras iniciativas que podem ser vistas com perspectiva crítica, obviamente. Mas, as ações, efetivaram, por exemplo, uma Lei específica para os Editais, o Fundo Municipal de Cultura e Conselho Municipal de Cultura que podemos contar como avanços a partir das diretrizes, apesar do próprio município não estar registrado no site pnc.org.br.

Em relação a SEC – Secretaria do Estado de Cultura e Economia Criativa é necessário refletir a partir das mudanças em relação a gestão da pasta, anteriormente, administrada por Robério Braga (por volta de duas décadas), Denilson Novo (1 ano), Marco Apolo Muniz ( 1 ano e continuando), ou seja, essas mudanças de direção pressupõem  compreensão conceitual da cultura e de habilidades de gestão cultural que possam direcionar o Estado. É evidente que o Estado atualmente tem engatinhado em pensar a Cultura como política pública apesar da influência dos últimos anos da presença de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura, mas, os esforços embrionários estão sendo revelados paulatinamente, além disso, é perceptível a ordem neoliberal da perspectiva da pasta tendo em vista a adição descompromissada e arranjada da “Economia Criativa” à Secretaria de Cultura do Estado.

Talvez, esse arranjo barroco evidencie um espaço necessário de debate democrático e participativo que a Secretaria precisa realizar com a sociedade civil organizada para entendermos os rumos práticos em relação às políticas públicas.

A sensação de vertigem é diariamente vivida e camuflada, hoje, pela crise sanitária mundial pelo COVID-19 e, no Brasil, é amplificada pela desigualdade social e os homens corruptos que usurpam a função da política no Estado Democrático.

O Brasil utópico e o Brasil heterotópico troca seus papéis vertiginosamente e, nós carentes de reflexão profundas para entender os dois universos, vamos vivendo a dinâmica social e política e o desmantelamento da própria dimensão da democracia e das políticas públicas nacionais para a Cultura, a inabilidade técnica e conceitual para garantir um porvir com a cultura paralela às outras necessidades básicas e fundamentais da sociedade brasileira, que precisa ser protegida da usurpação, e a atitude decrépita do pensamento neoliberal e sua emulação da força do Estado escoado para o privado.


Essa é uma opinião do autor e não do Portal Mercadizar.


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