Giovana Barbosa e Isabella Botelho; 04/11/2020 às 12:00

Violência contra a mulher: a pandemia dentro de casa

Durante o isolamento social, mulheres que já eram vítimas de violência doméstica se viram obrigadas a dividir a casa com seus agressores

A ideia de que a nossa casa é um local seguro e acolhedor não é uma realidade para todas as mulheres brasileiras. De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para o Atlas da Violência 2019, entre 2007 e 2017, 39,2% dos homicídios de mulheres no Brasil aconteceram dentro de casa. A pesquisa ainda mostra que as mulheres não estão seguras em local nenhum, mas que a violência é ainda pior em casa: enquanto a taxa de homicídios de mulheres fora do domicílio aumentou 28% em 10 anos, as ocorrências registradas em casa subiram 38%.

Antes da pandemia, o Brasil já ocupava o quinto lugar no índice de feminicídios do mundo, com 4,8 casos a cada grupo de 100 mil mulheres, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda segundo a organização, 5 mil mulheres são assassinadas por ano, deixando o país em sétimo colocado em números absolutos dentre 83 países analisados. Em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios de mulheres revelou que, no país, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por sua condição de gênero. Ainda segundo o documento, entre 2003 e 2013, o número de feminicídios passou de 3.937 casos para 4.762 mortes. Na mesma década, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875.

Segundo relatório publicado em novembro de 2018 pelo Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (Onudd), das 87 mil mulheres assassinadas no mundo em 2017, cerca de 50 mil foram mortas por um parceiro amoroso ou familiar. Uma mulher é morta por alguém que conhece a cada 10 minutos e 137 mulheres são mortas diariamente por algum parente. Ainda segundo o relatório, a África e as Américas são as regiões onde mulheres têm o maior risco de serem assassinadas por pessoas próximas. 

Um problema de saúde pública que sempre esteve presente em nossa sociedade, a violência doméstica foi intensificada durante a pandemia do novo coronavírus, no qual o isolamento social e a quarentena foram as principais medidas adotadas para amenizar o contágio e a propagação do vírus. Este regime impôs uma série de mudanças e consequências em nossas vidas, mas principalmente na de milhares de mulheres que já viviam uma situação de violência dentro de suas casas. Assim, sem um lugar seguro, elas foram obrigadas a permanecer mais tempo junto ao seu agressor. Este é um drama vivido por mulheres em todos os países e de todas as classes sociais, mas que se acentua nas comunidades e periferias, uma vez que as dificuldades financeiras e sociais agravam a situação das vítimas. 

Com o confinamento e o estresse gerado pela pandemia, a tensão nos lares aumenta ainda mais, o que põe em risco a vida da mulher, como explica a diretora executiva adjunta da ONU Mulheres, Åsa Regnér, em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo, no episódio que foi ao ar em 16 de março. “Se você vive em confinamento, você provavelmente está fazendo isso com seu parceiro. Tanto homens como mulheres estão em muitos casos sob pressão e frustração por causa de uma economia enfraquecida, ou que sabe de um parente que está doente ou qualquer coisa assim. Mas a violência não vem da frustração em si, todo mundo está frustrado, mas aqueles que usam violência em outras situações podem, provavelmente, usar a violência no isolamento e no confinamento”.

O ciclo da violência doméstica inicia justamente através do aumento das tensões. Esta primeira fase é marcada pela impaciência, desrespeito, irritabilidade e acessos de raiva por parte do agressor diante de situações banais e cotidianas. Uma das maiores dificuldades é da vítima se perceber no contexto da violência, isso se dá principalmente pelo fato da evolução gradual. Além disso, é comum que a vítima minimize o comportamento do parceiro agressor e até mesmo se responsabilize.

A fase seguinte consiste na materialização das tensões já instauradas através de agressões físicas, psicológicas, sexuais, morais e/ou patrimoniais. São dois os possíveis comportamentos das vítimas: a inércia, já que até então ela não se reconhecia como tal e permanece na violência, e a tomada de decisão em pedir ajuda ou denunciar. 

Quando não há ruptura do ciclo da violência na segunda fase, chega-se à terceira, que consiste no “arrependimento” temporário e comportamento carinhoso do agressor. Nesta “lua de mel”, termo muito utilizado para referir-se ao período, o homem se diz disposto a mudar e fazer valer uma possível reconciliação. Normalmente e em pouco tempo, este comportamento se esgota, dando início a um novo ciclo de violência. 

Em tempos de isolamento social e com a mulher em casa em tempo integral junto ao agressor, o ciclo da violência se intensifica, como explica a advogada Mileide Sobral: “A violência doméstica se demonstra pelo domínio e controle, logo o isolamento social facilita ao agressor manter esse domínio, devido vários fatores como dependência emocional, financeira, e um dos mais prejudiciais e difíceis de identificar, o exercício de violência psicológica que afeta de maneira que a pessoa não veja saída para aquela situação ou confia na promessa de que terá uma melhora no relacionamento ou até mesmo acredita que a culpa seja da vítima; entre outros. Apesar do aumento nos casos, muitos desses acabam pela reconciliação do casal, reiniciando o ciclo de violência”. 

No fim de março, quando iniciaram as recomendações de isolamento social para prevenir a contaminação pelo coronavírus no Brasil, os dados da violência doméstica começaram a chamar atenção. Somente na primeira semana de distanciamento, o Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher do governo federal, registrou um aumento de 8% no número de ligações e 18% nas denúncias. 

De acordo com dados divulgados pelo Monitor da Violência em setembro, nos primeiros seis meses de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de maneira violenta, significando um aumento de 2% em relação ao mesmo período do ano passado. Uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o levantamento ainda apontou que o número de feminicídios também aumentou – foram contabilizados 631 crimes de ódio. Em contrapartida, os registros de outros crimes relacionados à violência contra a mulher, como agressões e estupros, caíram. 

À primeira vista, essa queda nos registros de lesões corporais e estupros impressiona, já que era esperado um aumento por conta do confinamento. No entanto, apesar dos números, especialistas apontam que, na verdade, se trata de uma subnotificação. Ou seja, menos denúncias foram feitas em razão das dificuldades impostas pela pandemia. Se o homicídio e o feminicídio são as facetas finais da violência, isso significa que os números de denúncias e agressões, mesmo que apontem uma aparente redução na violência doméstica, escondem uma outra realidade. 

Corroborando para esta informação, o relatório “Violência Doméstica Durante a Pandemia de Covid-19”, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresentou dados coletados do Twitter que expõem essa subnotificação, uma vez que a rede social é utilizada principalmente para o compartilhamento de situações cotidianas: “A pesquisa em redes sociais mostrou aumento de 431% nos relatos de brigas entre vizinhos no Twitter entre fevereiro e abril de 2020, reforçando a hipótese de que, embora as medidas de isolamento social sejam necessárias para a contenção da pandemia de Covid-19, podem estar oportunizando o agravamento da violência doméstica”. 

Diante da dificuldade para as vítimas pedirem socorro durante a pandemia, governo, empresas privadas e organizações da sociedade civil se mobilizaram para ajudar mulheres na busca do socorro através de diversas alternativas de canais silenciosos para denúncias surgirem. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou em junho deste ano a campanha “Sinal Vermelho Contra a Violência Doméstica”. Na iniciativa, que já existia em outros países, a mulher vítima de violência mostra a palma da mão marcada com um “X” vermelho feito de batom ou outro material ao atendente de uma farmácia cadastrada, que aciona a Polícia Militar para socorrê-la. 

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também se movimentou através do lançamento do aplicativo Direitos Humanos Brasil, que possibilitou às vítimas de violência doméstica que fizesse as denúncias online. 

No Amazonas, segundo dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública (SSP), houve uma queda de 42% no número de mortes de mulheres. Em 2019, de janeiro a junho, foram oficialmente registradas 7 mortes. Já no mesmo período deste ano, foram 4. Ainda de acordo com a SSP, Manaus teve um aumento de 48,2% no número de mulheres vítimas de violência doméstica durante o primeiro semestre de 2020. Em 2019, o número de vítimas de janeiro a julho foi de 8.778. No mesmo período deste ano, o número aumentou para 13.010. 

Somente no primeiro trimestre de 2020, quase 150 mulheres receberam auxílio da Unidade Operacional Ronda Maria da Penha da Polícia Militar do Amazonas (PMAM) em Manaus. O programa, que existe há quase seis anos na capital e atua como mecanismo de defesa no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, intensificou os trabalhos durante o período de distanciamento social, como explica Capitã Clesia Franciane de Oliveira, em entrevista à Mercadizar. “Os atendimentos da Ronda Maria da Penha permaneceram inalterados. As viaturas continuaram indo ao endereço das acompanhadas e fazendo contato visual, respeitando o distanciamento social imposto pelas autoridades de saúde. Também intensificamos o contato telefônico”. 

Com base na Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, o programa tem como diretriz coibir a violência contra a mulher através de ações que garantam o cumprimento das Medidas Protetivas de Urgência (MPU). “Nós fazemos visitas domiciliares para verificar se o agressor está tentando se aproximar da ofendida ou se está de qualquer forma importunando a mesma ou sua família. Se o agressor for flagrado tentando se aproximar da mulher ele é preso em flagrante pelo descumprimento da MPU. Também realizamos palestras de conscientização em escolas,  empresas, instituições, igrejas e onde mais houver pessoas interessadas em conhecer mais sobre o trabalho da RMP e sobre o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher”, explica a Capitã. 

Além do aparato público, iniciativas independentes também foram essenciais no combate à violência contra a mulher durante o distanciamento social. Um exemplo é o Projeto Fênix Amazonas que, encabeçado pela advogada Jacqueline Suriadakis, manteve os trabalhos mesmo durante a pandemia. Criado há cerca dois anos por Jacqueline, que já foi vítima de um relacionamento abusivo, a rede de apoio promove o atendimento à vítimas de violência doméstica através de amparo jurídico, psicológico e social. 

Sem nenhum tipo de apoio governamental, o Projeto não tem uma sede fixa, realizando os atendimentos no apartamento de Jacqueline, localizado na zona Centro-Oeste da capital. Atualmente, conta com 18 profissionais de diversas áreas, como Advogadas, Psicólogas, Assistentes Sociais, Pedagogas, Economistas, Sociólogas e Contadoras. Segundo Suriadakis, o trabalho começa no resgate da vítima – que geralmente busca ajuda através das redes sociais do Projeto – em situação de risco e vulnerabilidade, e, a partir deste primeiro contato, ela é identificada e a acolhida. 

Antes da pandemia, a equipe fazia visitas e palestras semanais nas comunidades: “Levávamos lanches e fazíamos rodas de conversas entre mulheres, porém, com a pandemia ficamos impossibilitadas de continuar com as visitas até passar o período de isolamento”. 

Em entrevista à Mercadizar, Jacqueline contou que a procura pelo projeto aumentou em cerca de 30% durante o isolamento social, o que preocupou a equipe: “As vítimas estavam à mercê dos seus agressores, presas dentro de casa sem poder sair e denunciar. Tivemos que agir mesmo na pandemia para que estas pessoas fossem atendidas e socorridas. Naquele momento, todas nós estávamos preocupadas com o contágio, mas não podíamos nos omitir de ajudar as pessoas que nos procuravam. Enfrentamos o Covid todas equipadas e íamos ao encontro das pessoas que nos pediam socorro”.

A advogada ainda ressaltou que, quando as recomendações de distanciamento social foram recomendadas, a equipe imaginava que aumentaria a violência doméstica, mas  não na proporção que tomaram. A ação imediata de apoio promovida pelo Fênix foi a de passar a fazer os atendimentos de forma online para não deixar de dar o suporte necessário às vítimas. Além disso, também começaram a realizar lives semanais para encorajar e ajudar mulheres a identificarem o ciclo da violência. 

“Tivemos muitos casos de pessoas que não queriam fazer a denúncia, mas que pediam ajuda jurídica e psicológica. O principal pedido era de assistência psicológica porque estavam em pânico com tudo que estava acontecendo. Foi então que começamos a realizar atendimentos on-line e em seguida por conta do relacionamento que criamos com essas mulheres e pela dificuldade de estarmos próximas delas resolvemos fazer as lives semanais e deu super certo. Fui surpreendida com um público de outros estados buscando o Fênix e nos pedindo ajuda. Foi então que começamos a atender de forma on-line pessoas de outros estados”, explica.

Metendo a colher: saiba como ajudar

É importante ressaltar também que qualquer pessoa pode ajudar. Se você conhece uma mulher que já tem um histórico de violência, que dá sinais de que possa estar em risco na convivência do companheiro ou se você presenciou uma situação de agressão, ofereça ajuda e mantenha contato diário. Crie um código para que essa pessoa possa te pedir ajuda caso seja necessário. Reúna os dados da pessoa enquanto a situação estiver tranquila para que, num caso extremo, possa ajudá-la a fazer um boletim de ocorrência. Se ouvir gritos ou discussões na vizinhança, não ignore, preste atenção. Para interromper uma situação de violência, você pode ligar para o 190 ou mesmo tocar a campainha ou bater na porta para que o agressor saiba que está sendo ouvido.

Muitas vezes, pelo receio de procurar ajuda, a vítima pode se isolar e, consequentemente, se tornar ainda mais vulnerável às agressões, como explica Mileide Sobral. “O que se pode fazer para ajudar é sempre se manter atenta aos sinais de violência e utilizar os canais de denúncia. Principalmente a polícia que tem a missão e a obrigação de proteger e ajudar todas as vítimas de crime. Assim como oferecer ajuda, uma conversa honesta, incentivar a recomeçar e a buscar ajuda psicológica. Para ajudar a vítima, primeiro de tudo deve-se abster de julgamentos, e procurar a melhor forma de ajudar, seja incentivando a conhecer mais sobre o assunto para que a mesma possa identificar a situação de violência, incentivar a procurar ajuda especializada e oferecer apoio emocional”.

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