A televisão chegou ao Brasil há quase 70 anos e, desde então, esteve presente na vida dos brasileiros informando, fazendo companhia às famílias e, sobretudo, ditando tendências. Com ela, nasceram as telenovelas – a primeira foi ao ar em dezembro de 1951. Uma mania nacional, as telenovelas abordam temáticas essenciais da nossa sociedade, bem como polêmicas e tabus, transmitindo mensagens que devem se tornar centro de debates e reflexão por parte dos telespectadores. No entanto, durante muitos anos, elas não abordaram e nem representaram uma significante parte da sociedade: a comunidade LGBTQIA+.
Foram necessárias décadas até que o primeiro personagem gay aparecesse na televisão brasileira: foi na novela O Rebu, da Rede Globo, há apenas 45 anos. A trama girava em torno de um misterioso assassinato. O pesquisador Luiz Eduardo Peret destaca que “até o fim da primeira metade da novela, o público não sabia quem havia morrido, nem se era homem ou mulher. Só no último capítulo se revelava que o rico Conrad Mahler matara a jovem Sílvia por ciúmes dela com seu ‘protegido’ Cauê. A homossexualidade estreou na telenovela através do crime ‘passional’ e da dependência financeira de um jovem por um homem mais velho”.
Nesse mesmo período, o país assistiu à primeira “onda” em prol dos movimentos LGBTs no Brasil, formados majoritariamente por gays e travestis, como resposta ao silenciamento imposto pela “moral e bons costumes” – naquela época, vivia-se o auge da Ditadura Militar, quando foram retirados uma série de liberdades civis e de direitos individuais.
O primeiro beijo gay numa novela das 21h aconteceu em 2014, entre Matheus Solano e Thiago Fragoso, que interpretavam o casal Félix e Niko, respectivamente, na novela Amor à Vida. Quase dez anos antes da cena, a Globo gravou o beijo dos atores Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro, mas acabou não indo ao ar em América (2005). Já em Torre de Babel (1998), a emissora matou as personagens lésbicas de Christiane Torloni e Silvia Pfeifer pela má aceitação do público.
Já o SBT, outra tradicional emissora brasileira, vetou o beijo entre os personagens Lui Mendes e Chico na trama Amor e Revolução (2011), mas mostrou o de Marcela e Marina, vividas, respectivamente, por Luciana Vendramini e Giselle Tigre na mesma novela.
Todos estes acontecimentos nos devem fazer parar para analisar como os personagens LGBT foram e são representados nas novelas até hoje. Em O Rebu, por exemplo, foi apresentado um estereótipo de um jovem homem homossexual que dependia financeiramente de um homem casado e mais velho. Além de como são representados, outra questão vem à tona: quantos deles são interpretados por atores e atrizes membros da comunidade LGBTQIA+? Nos últimos anos, muita coisa mudou, outras nem tanto. É fato que vemos cada vez mais representatividade na mídia brasileira, seja nas telenovelas, em reportagens da mídia impressa e online ou nas peças publicitárias.
Nos últimos anos, a publicidade brasileira vem trilhando um caminho, mesmo que ainda a passos lentos, em prol da diversidade e da representatividade. Hoje, já vemos mais cabelos ondulados, cacheados e crespos como nunca antes. Mais mulheres e homens negros já estrelam campanhas publicitárias. Também há mais diversidade sexual e identitária, não podemos negar. No entanto, apesar dos avanços, as transformações ainda não acontecem na velocidade desejada. Os debates na sociedade estão anos luz à frente da mídia.
Mesmo que muitas marcas já enxerguem além e façam questão de lutar ao lado da comunidade LGBTQIA+ e de outras minorias, outras preferem não se manifestar em favor da diversidade. Vale lembrar a importância e a influência que as marcas têm na sociedade: elas têm o poder de ocupar o espaço e modificar a produção cultural que vemos na mídia, através da educação do público geral e presença de todos os tipos de pessoas em suas campanhas, como explica o ator Hugo Bonemer em entrevista exclusiva ao Mercadizar.
“As grandes marcas ainda não entenderam a diversidade como fonte de renda. São poucas as que não se comportam de forma oportunista. Não adianta fazer publicidade com casais gays e ter o dono envolvido na bancada política que diz proteger crianças e não considera as que nasceram gays. As grandes marcas e seus líderes têm relação direta com o grau de LGBTfobia que a sociedade experimenta hoje”, afirma o ator Hugo Bonemer em entrevista exclusiva ao Mercadizar.
O processo de democratização da mídia não implica somente em ampliar o acesso e buscar a pluralidade nas representações, conforme afirma a jornalista Gyssele Mendes em artigo à Carta Capital. Muito mais do que representatividade em uma peça publicitária, é necessário que exista consistência por trás do discurso e que essa empresa realmente se empenhe e se comprometa com a causa. Precisa ser natural, verdadeiro e, o mais importante, duradouro. Ter diversidade nas empresas (e também nas agências de publicidade) ajuda a ter no planejamento o olhar verdadeiro de quem se quer representar. Ninguém melhor que o participante da minoria para dizer como ele deve ser representado.
Bonemer, que assumiu publicamente seu relacionamento com o também ator Conrado Helt em entrevista em 2018, compartilha diariamente em suas redes sociais conteúdo em favor ao respeito à diversidade e a causa LGBT. Em entrevista à Quem, ele falou que tinha receio de uma possível repercussão negativa do público e das empresas: “A repercussão foi totalmente contra o que eu imaginava. O que eu ouvia de outras pessoas que tinham dividido isso com o público era horrível. A apresentadora Ellen Degeneres, por exemplo, ficou oito anos sem trabalhar após dizer que era lésbica. Muita gente dizia que eu nunca ia trabalhar na TV novamente”.
Cerca de um ano após a entrevista em que falou abertamente sobre sua orientação sexual pela primeira vez, o ator foi convidado para o quadro Show dos Famosos, do programa Domingão do Faustão, da Rede Globo. Para ele, conquistar aquele espaço em um dos programas de maior audiência da televisão brasileira tinha um significado especial. Era a representatividade, enfim, batendo à porta.
Em entrevista ao Mercadizar, Bonemer também contou que, apesar de não ter perdido trabalhos, não teve e nem tem uma vida tranquila enquanto artista LGBT. “Como toda pessoa LGBT, eu experimento os mesmos preconceitos. São meus privilégios que me tiram de estatísticas, me blindam de ataques, me protegem de abusos e me possibilitam usar meu tempo com uma militância contundente, mas menos agressiva. Quando alguém me elogia por manter uma comunicação não agressiva, eu automaticamente me lembro que eu só posso fazer isso porque não tem ninguém me expulsando de um banheiro, por exemplo, abusando psicologicamente de mim em casa por dependência financeira ou fazendo sessão de descarrego para tirar o diabo gay do corpo. Mas ainda que eu goze desses privilégios, eu adoraria dizer que minha vida flui de maneira tranquila como artista LGBT”.
O ator, que tem em seu currículo importantes musicais como Hair, novelas como Malhação e A Lei do Amor e seriados, entre eles O Negócio, continuou trabalhando após assumir sua orientação sexual. Depois, ele ficou em cartaz com Ayrton Senna, o Musical e ainda voltou aos palcos com Yank!. Esses trabalhos mainstream, segundo ele, foram fundamentais para ele poder fazer trabalhos com temática LGBT.
“Eu só consigo fazer trabalhos com temática LGBT porque guardei dinheiro dos trabalhos mainstream em teatro musical onde interpretei homens héteros. Nunca tive lucro com meus trabalhos artísticos com temática LGBT, porque eles geralmente custam mais do que o retorno prevê. A única forma de se pagarem é através de verba direta de marketing de empresas. Eu só recebo negativas das marcas para meus projetos de diversidade e inclusão porque elas nunca estão preparadas pra falar desse assunto”, conta.
Para finalizar, Hugo deixa o conselho: “Entendam a força que a sua voz tem. Exijam essa representatividade que traz calor pro coração de vocês. Exijam artistas abertamente LGBTs na dramaturgia, exijam que seja legislado em favor de LGBTs, exijam que um artista que ganhe dinheiro com a população LGBT se posicione politicamente sim. E olhem para pessoas trans e pretas, mas olhem mesmo! Eles não estão se sentindo parte desta comunidade”.
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