Isabella Botelho; 25/03/2021 às 10:00

Protagonismo na Ciência: As mulheres na linha de frente contra a Covid-19

É fato que a ciência e suas descobertas são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade. No entanto, ao longo dos anos, os trabalhos mais notórios e conhecidos são aqueles realizados por homens. Muito por este motivo, caiu no imaginário popular que as mulheres nem mesmo chegaram a participar da área científica. Porém, com um olhar atento à história, é possível perceber que, mesmo não sendo incentivadas, as mulheres participaram ativamente da ciência e foram responsáveis por grandes descobertas e feitos à humanidade

Historicamente marginalizadas pela comunidade científica, as mulheres são apenas 54 das 919 pessoas já homenageadas com um Prêmio Nobel. Desde 1903, com Marie Curie, apenas 17 mulheres receberam o Prêmio Nobel em Física, Química ou Medicina, enquanto 572 homens foram premiados. 

A pauta educacional sempre foi uma reivindicação do movimento feminista. Hoje, a presença feminina é marcante em todos os níveis de formação educacional, mas nem sempre foi assim. As mulheres ingressaram na escola tardiamente e com formação voltada para os cuidados com o lar e a família.

Segundo o Escritório das Nações Unidas para o Espaço Exterior (Unoosa), quando o assunto é pesquisas sobre ciência, tecnologia, engenharias e matemática, as mulheres representam 28,8% da força de trabalho no mundo, enquanto os homens representam 72,2%. Estes dados são um reflexo do tardio acesso delas à educação. 

Uma pesquisa realizada pela UNESCO sobre a participação das mulheres na ciência aponta que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a igualdade de gênero nesse campo se torne realidade. Segundo o relatório “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)”, menos de 30% dos pesquisadores no mundo são mulheres. Ainda segundo o relatório, o número de mulheres reconhecidas como líderes em sociedades de alto prestígio ou por meio de premiações permanece baixo.

Apesar disso, as mulheres estão no centro da descoberta daquilo que conhecemos como coronavírus. Não do SARS-CoV-2, causador da Covid-19 e descoberto em dezembro de 2019, mas o primeiro vírus da família identificado cientificamente pelo ser humano.

O primeiro coronavírus foi descoberto em 1964, em Londres, pela virologista escocesa June Almeida. Seu talento foi reconhecido no Reino Unido e ela foi convidada para trabalhar na Escola de Medicina do Hospital St. Thomas, em Londres. Mais tarde, June trabalhou na Escola Médica Real de Pós-graduação, onde obteve o título de doutora. Ela foi pioneira em um método que melhora a visualização de vírus usando anticorpos para agregá-los.

Em 1965, June estava analisando amostras de fluidos nasais humanos quando identificou um vírus com algumas características semelhantes ao Influenza. Esses vírus, quando observados por microscópio, apresentavam estruturas proeminentes na sua superfície formando um tipo de coroa. Por isso, foram chamados de coronavírus – “corona” vem do latim e significa “coroa”. Além de ser a primeira virologista a ver o coronavírus, a doutora June ainda foi a primeira a visualizar o vírus da rubéola, estudou o vírus da Hepatite B e, no final de 1980, também ajudou a registrar imagens do vírus HIV. Em 2007, mesmo ano do seu falecimento, ela participou da publicação do “Manual para diagnóstico viral rápido de laboratório”, documento produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 

June Almeida (Foto: Reprodução/Internet)

Em 2019, com o surgimento do novo coronavírus, iniciou-se uma corrida para descobrir detalhes sobre o vírus e, posteriormente, iniciar o processo de produção das vacinas. No Brasil e no mundo, mulheres tomaram à frente e lideraram pesquisas sobre o assunto. 

Apenas 48 horas após o registro do primeiro caso oficial de Covid-19 no Brasil, a brasileira Ester Sabino, juntamente a sua equipe, conseguiu sequenciar o genoma do novo coronavírus em apenas dois dias. Médica e professora, Ester também é cientista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, ela já foi diretora do Instituto de Medicina Tropical desta mesma faculdade. Há cerca de 30 anos a professora Ester vem realizando pesquisas relacionadas a várias doenças como o HIV, doença de Chagas e anemia falciforme. Há alguns anos, quando a epidemia de zika, doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, se instalou no Brasil, ela e sua equipe conseguiram recursos financeiros de várias partes do mundo. Este dinheiro contribuiu para a montagem de um laboratório destinado a pesquisas de doenças transmitidas por mosquitos.

Ester Sabino (Foto: Reprodução/Internet)

As biomédicas Jaqueline Goes de Jesus, Ingra Morales, Flávia Salles e a farmacêutica Erika Manuli são as pesquisadoras da Faculdade de Medicina da USP, dentro do Instituto Adolfo Lutz (IAL), que decifraram a amostra do primeiro caso de infecção da Covid-19 na América Latina. O resultado saiu em apenas 48 horas, mostrando a estrutura do vírus. Elas fazem parte da equipe do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), liderado por Ester.

Doutoranda da UFBA, Jaqueline Goes de Jesus liderou o primeiro sequenciamento genético do coronavírus no Brasil (Foto: Reprodução/Internet)

Atuando na linha de frente no combate à doença desde o início da pandemia no tratamento aos pacientes, Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma das principais e mais experientes pneumologistas do Brasil, tornou-se participante ativa dos principais telejornais e programas brasileiros com o intuito de alertar a população aos riscos da doença e difundir a ciência para os telespectadores.

Dalcolmo se formou em Medicina em 1978 pela Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (EMESCAM). Posteriormente, realizou sua residência médica em pneumologia na Fiocruz. Após uma ampla formação de especializações em 1999, recebeu seu doutoramento na Escola Paulista de Medicina, vinculada à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com a tese “Regime de curta duração, intermitente e parcialmente supervisionado, como estratégia de redução do abandono no tratamento da tuberculose no Brasil”. Desde 2002, é professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Margareth Dalcolmo (Foto: Reprodução/Internet)

Em janeiro deste ano, o processo de aprovação das primeiras vacinas a serem utilizadas no Brasil marcou o início de uma nova fase no combate à pandemia. Servidora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2007, a farmacêutica Meiruze Sousa Freitas, ganhou destaque nos últimos meses ao ser a relatora responsável por deliberar as vacinas do Instituto Butantan e de Oxford para uso emergencial no país.

Meiruze Sousa Freitas (Foto: Reprodução/Internet)

Atualmente diretora substituta da Anvisa, cargo o qual apenas ocupou no ano passado, ela dedica ao menos 14 horas do seu dia à facilitação da distribuição das vacinas contra a Covid-19 pelo território brasileiro. 

As mulheres que estão na linha de frente no combate ao coronavírus e também todas as outras cientistas, pesquisadoras, professoras e profissionais da área servirão de inspiração e referência para tantas outras gerações que virão. Precisamos admirar estas mulheres e seus feitos, a representatividade que elas carregam inspira. No entanto, não podemos esquecer que, para uma completa evolução, é necessário o investimento e o incentivo de políticas públicas que priorizem o acesso e a permanência das mulheres nas ciências, bem como a ascensão a cargos de poder. Apenas assim abriremos espaço para o diálogo sobre a importância de presença feminina nesses espaços, bem como para o debate sobre a desigualdade de gênero.

Rosemary Pinto: a bússola do Amazonas

No Amazonas, a epidemiologista Rosemary Pinto esteve na linha de frente no combate à doença desde o início da pandemia. Durante todo esse tempo, ela foi uma voz sábia e sensata que guiou os amazonenses com maestria através de suas ações na liderança da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), sempre prestando as melhores informações e esclarecimentos sobre o coronavírus.

Farmacêutica bioquímica formada pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma das idealizadoras da FVS-AM, Rosemary Costa Pinto faleceu aos 61 anos de idade em janeiro deste ano. Ela foi uma das vítimas da Covid-19 no estado. 

Rosemary Pinto (Foto: FVS-AM)

Para o Amazonas, ela representou a luta no combate ao coronavírus e sempre passou segurança à população que, em contrapartida, nutriu um carinho especial pela epidemiologista. Todos os fins de tarde no último ano, tornou-se rotina assistir aos seus pronunciamentos. Ao anunciar seu falecimento, o Governo citou que “perdemos a bússola do Amazonas”. Não havia melhor descrição. No dia 22 de janeiro, todos os amazonenses sentiram como se estivessem perdendo alguém muito próximo.

Para as filhas Mônica e Camila, inteligência era a palavra que a definia. “Ela era extremamente inteligente. Era também dedicada. Nunca confiou apenas na inteligência, mas investia tempo e esforço para se aperfeiçoar. Era uma perfeccionista. Ao mesmo tempo era uma pessoa extremamente sensível e solidária. Nos ensinou que cada número numa planilha epidemiológica era uma vida. Era o amor de alguém. Que não se pode pensar saúde pública como indicadores frios”, afirma Mônica. 

Uma mulher incrivelmente amorosa e companheira, mas de pulso firme, Camila a descreve como uma pessoa enérgica e radiante. “Ela só ficava parada quando estava lendo (o que muitas vezes fazia ao invés de dormir, pois sempre teve insônia). Incapaz de ver uma injustiça sem se posicionar, ela era uma ‘força da natureza’, como minha irmã descreve: não se intimidava, colocava toda a paixão para fazer o que é certo e se dedicava com muita energia. Era uma baixinha gigante”. 

Rosemary teve uma carreira pouco usual. Se formou na graduação, mas interrompeu a carreira e escolheu ficar em casa para se dedicar a criação dos filhos por 6 ou 7 anos, trabalhando com os afazeres domésticos e auxiliando o marido numa pequena loja da família. Após esse período, voltou ao mercado. Mônica, que à época tinha 9 anos, conta que esta retomada foi difícil. “Ela se sentia insegura por ter ficado afastada e culpada por não dedicar mais tanto tempo aos filhos. É um dilema que se impõe às mulheres pela própria estrutura social, né… O modelo de trabalho que ignora a família, que vê o profissional como um ente autômato e descontextualizado. Mas, com a dedicação e o foco que ela sempre teve, ela conseguiu organizar as coisas e manter essa dupla jornada, organizar os papéis de mãe e profissional muito bem”, explica.

Para a família, ela deixa um exemplo de admiração, coragem, força e o legado mais importante: o conhecimento e a empatia, duas qualidades que exercia de maneira magistral em sua profissão. 

Numa emocionante entrevista à Mercadizar, Camila e Mônica concluíram: “O astrofísico e divulgador científico Carl Sagan diz, no prefácio de um livro seu em que traz a ‘Ciência como uma vela no escuro’, que os seus pais são os professores mais marcantes que ele teve pois, apesar de todas as suas limitações intrínsecas, eles ainda foram os que mais o incentivaram a estudar e se maravilhar com as ciências e a natureza humana, e seguir uma carreira científica e acadêmica. Assim, o maior legado que nossos pais nos deixam sem dúvidas é o da nossa educação (e todos os sacrifícios que eles fizeram para garantir isto) e nosso apreço pela Ciência e o conhecimento”. 

Para nós, uma equipe formada apenas por mulheres, Rosemary foi com certeza um grande exemplo de mulher e profissional. Assim como todos os amazonenses, somos gratas por seu trabalho, dedicação e contribuição à saúde do estado, mas, acima de tudo, agradecemos por poder contar um pouco de sua história a tantas outras mulheres. 

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