A imprensa é ainda mais essencial em momentos como os que vivemos agora. Mais do que nunca, as pessoas sentem a necessidade de estar informadas e de entender a realidade, por mais difícil que ela possa ser. Para isso, é necessário que os profissionais da comunicação vão às ruas para mostrar o que está acontecendo.
No desafio diário em busca da notícia, repórteres, fotógrafos e fotojornalistas reafirmam o quão fundamental é a história e a imagem que imortalizam uma ocasião. Com pautas na cabeça, uma câmera na mão e munidos de máscara e álcool gel, eles cumprem o compromisso de ser os olhos do leitor e tem a missão de contar e ilustrar os impactos da pandemia.
Nos últimos três meses, o trabalho tem sido ainda mais desgastante e cauteloso. Atuando também na linha de frente, eles se deparam com o desafio de acessar a rotina dos hospitais, cemitérios, além de ouvir e presenciar histórias com fins, muitas vezes, tristes. Conversamos com sete fotógrafos e fotojornalistas amazonenses que estão na incessante cobertura dos impactos da pandemia de coronavírus em Manaus: em entrevistas exclusivas ao Mercadizar, Alex Pazuello, Bruno Kelly, Edmar Barros, Junio Matos, Lucas Silva, Michael Dantas, Raphael Alves e Sandro Pereira contaram como tem sido seus dias de trabalho, o que mais os marcou e o que têm visto nas ruas da cidade. Leia seus relatos:
Alex Pazuello, 30 anos de fotojornalismo: “Comecei a fotografar ainda no começo de toda essa pandemia. Sem dúvida alguma é o trabalho mais impactante que já fiz como fotógrafo em 30 anos de profissão. Ver o sofrimento, o desespero das famílias é muito forte, chego até a sonhar algumas vezes… A gente tenta se concentrar, não se envolver emocionalmente e ficar invisível para não ser invasivo, o que é uma das maiores dificuldades. Ainda tem a preocupação de você não levar o vírus para dentro da sua própria casa”.
“Minhas percepções são sempre as mesmas em qualquer lugar que eu vá em Manaus. Falta de respeito da maior parte da população, que não acredita e insiste em sair de casa, se aglomerar e fazer piadas sobre o vírus e tudo que estamos vivenciando. Isso muda quando você está no cemitério. As imagens do cemitério são, sem dúvida, as mais marcantes!”.
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Bruno Kelly, 14 anos de fotojornalismo: “As coberturas na Amazônia nunca são fáceis, seja pela distância e dificuldade de logística, calor e umidade. Mas estar na floresta é sempre um privilégio. Agora nessa cobertura tem sido muito difícil. É uma tragédia sem fim. Muito sofrimento. Tenho que confessar que, em diversas situações, fotografei com lágrimas nos olhos e em algumas vezes até não consegui fotografar por mais tempo. Como por exemplo em um atendimento do Samu em que o paciente chegou bem mal a uma base e mesmo com várias tentativas da equipe de reanimá-lo, ele acabou indo a óbito na frente de vários familiares. Foi uma das piores situações que já passei. Acho que é uma situação bem difícil e diferente de tudo que já passamos. O povo custa a acreditar, até o momento em que a doença acomete alguém próximo. Acho que essa dúvida é criada muito pela postura dos governantes, que acabam fazendo um desserviço à população. O isolamento social é a forma mais eficiente de conter a doença, com vários estudos provando isso, e tivemos ruídos na comunicação dessa informação. Também acredito que há pessoas que não têm a escolha de ficar em casa, por isso, quem pode tem o dever e obrigação de se resguardar por aqueles que não têm os mesmo privilégio que nós temos. Essa pandemia mostrou que somos todos iguais nesse mundo quanto ao risco de contrair a doença.”
“É bem difícil, mas também tentamos contar histórias de pessoas que estão fazendo a diferença, como a Vanda Ortega, indígena e moradora do Parque das Tribos, que também é técnica de enfermagem e tem se esforçado para ajudar a comunidade em que vive, fazendo atendimento de porta em porta, campanha de doação de alimentos e produzindo junto com suas companheiras, máscaras para proteção dos indígenas. Também acompanhei a médica do SAMU, Alessandra Said, que além de encarar plantões intensos ainda se desdobra para dar atenção aos pais, que acabaram contraindo a Covid-19. Ela ainda sofre por estar a quase dois meses sem poder ver a filha, que está morando na casa do pai, por conta do trabalho da mãe. Esses bons exemplos nos mostram que ainda há esperança”.
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Edmar Barros, 17 anos de fotojornalismo: “Sem dúvidas, essa é uma das coberturas mais difíceis da minha vida. Apesar de eu já ter feito cobertura de grandes tragédias, inclusive Brumadinho e outras tantas de nossa história, essa é a mais longa, já são 83 dias. O desgaste físico e emocional são extremos, principalmente a parte emocional… Precisamos cuidar muito. O mais difícil pra mim é o cemitério. Os primeiros enterros que eu cobri. Eu fui o primeiro fotojornalista a registrar um enterro aqui em Manaus: foi o do músico Binho Lopes, dia 31 de março. As imagens repercutiram pelo mundo inteiro. Até então, não tínhamos noção de como seriam os enterros com o distanciamento e as pessoas não podiam chegar perto. Falar de uma imagem é difícil, são tantas. As últimas que eu me lembro agora são as do velório do Messias Kokama, no Parque das Tribos, foi muito emocionante. Muitos momentos são marcantes, principalmente a dor e as conversas com as famílias. Muitas vezes, não fica a imagem que você fez, mas a conversa que você teve com os familiares, você se coloca no lugar daquelas pessoas e você, de uma certa forma, sente aquela dor. Às vezes, ela marca até mesmo mais do que a imagem. Isso faz parte do meu trabalho porque eu faço questão de conversar e acho que é isso que torna o nosso trabalho verdadeiro, sempre com muito respeito”.
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Junio Matos, 4 anos de fotojornalismo: “Tudo começou pra mim em final de fevereiro, quando foram confirmados os primeiros casos de coronavírus no Brasil. Eu lembro que ainda nem tinha pessoas usando máscaras nas ruas e eu precisava ilustrar matéria de coronavírus com pessoas usando máscaras. Tivemos que comprar uma máscara e pedi para um colega da redação usar só para ilustrar mesmo. Algumas imagens ficam marcadas para sempre, principalmente as dos cemitérios: ver as famílias enterrando seus entes queridos todos juntos numa vala comum, ver pessoas chorando… É uma coisa que não tem como esquecer, é uma experiência muito marcante. Pra mim, o mais difícil é a parte humanista. O mais difícil do jornalismo, pra mim, é registrar essas emoções relacionadas a morte”.
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Lucas Silva, 7 anos de fotojornalismo: “Eu comecei a fotografar a pandemia logo quando surgiram os primeiros casos. Eu andava pelas ruas do Centro a procura de uma imagem de alguém usando máscaras e era muito difícil. Hoje, é difícil você ver a maioria das pessoas sem máscara. Como eu trabalho em jornal, no início da pandemia o que eu procurava fotografar era a mudança no dia a dia das pessoas para suprir a demanda de fotografias para o uso diário no jornal. Logo quando começou a aumentar o número de mortes eu passei a acompanhar os sepultamentos no cemitério. Tudo isso é uma experiência muito triste e intensa. Fotografar esses tempos de pandemia exige muita responsabilidade e profissionalismo. Temos que fazer nosso trabalho sem ser muito invasivo, mesmo que acabe sendo de alguma forma. É preciso respeitar a dor e o espaço da família. Você acaba sentindo a dor deles também. Tem momentos em que você sabe que precisa baixar a câmera e se afastar”.
“A principal dificuldade na cobertura da pandemia é conseguir imagens que sensibilizem, mas que não exponham os familiares. Algumas pessoas abaixam o rosto ou se viram para não aparecerem, mas aí você já entende e para de fotografar aquelas pessoas. Muitas delas estão tão abaladas que não se importam de estarmos fotografando… Eu costumo sempre começar a fotografar mais distante e vou me aproximando, justamente pra sentir a situação e saber como agir naquele momento”.
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Michael Dantas, 14 anos de fotojornalismo: “Comecei a cobertura um pouco tarde, dia 21 de abril uma agência Internacional me contratou para fazer fotos no cemitério Nossa senhora Aparecida, no tarumã, a imprensa estava proibida de entrar no cemitério nesse dia, consegui fazer uma foto de drone nesse mesmo dia que mostrava os sepultamentos em valas coletivas, 5/6 caixões enfileirados e enterrados ao mesmo tempo. Essa foto foi bastante publicada em vários jornais e sites nacionais e internacionais. O trabalho não tem sido fácil por aqui, estamos sempre perto das pessoas no momento de tristeza… No último sábado, 16, entrevistei uma senhora que perdeu 3 filhos e 2 cunhados para o covid-19, não tem nem como imaginar a dor que essa senhora sentiu com tantas perdas. Essa entrevista me marcou. Realmente não é fácil, espero que isso tudo passe logo. Quem trabalha com fotojornalismo já está acostumado a ver cenas chocantes, é um trabalho psicológico que a gente desenvolve pra estar ali perto de situações difíceis e tentar não absorver as emoções. Sempre respeitando as pessoas que estou fotografando, tento sempre me colocar no lugar dessas pessoas”.
Raphael Alves, 20 anos de fotojornalismo: “Tem sido um trabalho de fora para dentro em muitos sentidos. Começou durante o distanciamento social e seguiu para a situação em que, infelizmente, estamos. Eu colaboro com agências e periódicos e, fora de casa, aproveitei a cobertura que estava fazendo pra eles. No período em casa, estava fotografando a sensação de estar distantes, de estar isolado. Eu sou claustrofóbico e não foi fácil no início. Mas aí vieram as coberturas e vi que a angústia do lado de fora pode ser ainda maior”.
“Pra mim, a fotografia só se completa quando alguém a vê, quando chega às pessoas. Aí eu me pergunto: ‘Como tem sido pra elas? Como tem sido pra mim?’. O que eu quero dizer é que, quando publico as fotos no meu perfil no Instagram, nem coloco legendas porque eu simplesmente não sei o que dizer. Eu estou fotografando as perguntas que faço a mim mesmo e as sensações em busca de um sentido nisso tudo. Toda vez que eu saio, nem que seja para ir à farmácia ou levar o lixo na rua, eu levo a câmera. Não saio todo os dias porque dependo das demandas da agência ou jornal. Além disso, tenho minha esposa em casa, há o medo de me infectar e trazer para dentro de casa”.
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Sandro Pereira, 12 anos de fotojornalismo: “Logo no início, nós (eu e Edmar) fomos para o aeroporto para ver pessoas chegando usando máscaras de voos internacionais e nacionais, foram as primeiras fotos que fizemos. Depois, quando houve o primeiro caso de falecimento, começamos a ir para o cemitério Parque Tarumã. Começamos a ir todos os dias e passávamos praticamente o dia todo acompanhando os enterros. Nós conversávamos com as famílias e essa era uma das partes mais tristes. Conversávamos com algumas que achavam melhor nós não fazermos fotos e nós respeitávamos… Aquele momento era difícil. Nosso papel não era insistir nisso, era registrar para mostrar o que estava acontecendo. O mais difícil foi quando começaram a abrir as valas e não permitiram mais que a imprensa entrasse. Precisamos entrar ‘na marra’ e, num dia desses, eu entrei pelo mato e fiz imagens de drone. Depois, me acharam e fui retirado do cemitério”.
“A parte difícil é chegar com a família e conversar para pedir informações para confirmar se o óbito foi por covid-19. Eu e Edmar fomos os primeiros a fazer fotos de pessoas que realmente faleceram por coronavírus. É histórico. Algo que me marcou muito foi quando um senhor faleceu de madrugada e nós fomos para a casa dele e ficamos até às 16h esperando o SOS Funeral. É uma das imagens que mais me marcou e que mais marcou meu trabalho até agora”.
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Olhar de fora
Bem como os profissionais da cidade, repórteres e fotojornalistas de outras localidades passaram por Manaus para relatar o colapso na saúde amazonense. Conversamos com três deles: o fotojornalista italiano Tommaso Protti, o jornalista paraense Ullisses Campbell, da revista Época, e o jornalista freelancer Yan Boechat, que fez matérias para o jornal O Globo e para o The Intercept.
Tommaso Protti, 10 anos de fotojornalismo: “Eu passei apenas quatro dias em Manaus para fazer essa pauta sobre a crise na cidade e a intenção era mostrar a gravidade da situação. Eu fiz uma cobertura geral, acompanhei uma unidade do SAMU, fotografei num cemitério, tive acesso a um hospital de campanha e fui numa comunidade indígena. Eu conheço bem a cidade, estou fazendo um trabalho a longo prazo sobre a Amazônia, e dessa vez foi impactante ver o que está acontecendo. Documentar o vírus foi um trabalho difícil principalmente pelo cuidado que devemos ter com a nossa saúde e com a dignidade das pessoas para não se aproveitar da dor… Infelizmente, o Brasil passou muito a mensagem de que o vírus não era perigoso, então é ainda mais importante mostrar o que está acontecendo, as imagens têm uma função ainda mais importante. Os poucos dias que eu fiquei foram suficientes para fazer bastante material. Eu estou documentando a crise no Rio de Janeiro e em São Paulo também e a minha percepção é que em Manaus está mais dramático. Nos dias que passei na cidade, o SAMU não tinha muitas ocorrências relacionadas ao covid-19, eu registrei muitos casos de óbitos dentro de casa e isso foi muito impactante”.
Ullisses Campbell, 24 anos de jornalismo: “Cheguei em 20 de abril e fiquei até 30 de abril em Manaus. O que mais me marcou foi o descaso com os mortos. Eu testemunhei o primeiro dia em que os enterros passaram a ocorrer em valas comuns e isso me deixou chocado. Uma retroescavadeira abriu uma vala enorme e puseram dentro dela 15 caixões lado a lado e até uns por cima dos outros, enquanto familiares se posicionavam ao lado da cova coletiva para acompanhar o sepultamento. Uma garota de 17 anos chorava copiosamente pela mãe, que estava sendo enterrada. Quando eu perguntei qual era o caixão da sua mãe naquela pilha, ela não soube responder. Esse descaso com as vítimas me deixou estarrecido”.
“Não só em Manaus, mas também em Belém – onde também fiz matéria sobre pandemia – os maiores desafios é arrancar informações oficiais do governo. Tudo é muito burocrático e pouco transparente. Fora isso, tem o desafio de ser muito cauteloso para lidar com familiares de vítimas, pois as pessoas ficam insensíveis e incrédulas ao perder entes queridos de forma tão repentina e trágica”.
“Vi em Manaus um sistema de Saúde sucateado por governos passados e perpetuados pelo atual governo. É importante que a população acorde e deixem de votar em quem não está preparado para governar. Essa pandemia é uma prova de que muitos governos não estão preparados para enfrentar uma crise sanitária como essa. Ao mesmo tempo, percebi que a população não está ligando muito para o que está acontecendo. Assim como em outras capitais, vi muita gente na rua sem máscara e até passeando em grupo na Ponta Negra e na periferia, enquanto os hospitais já não apresentavam leitos de UTI”.
Yan Boechat, 23 anos de jornalismo: “Estive em Manaus entre o final de abril e o início de maio. Fiquei 10 dias trabalhando na cidade. Manaus foi uma experiência muito interessante. Ver como a primeira cidade a entrar em colapso estava lidando com a doença foi algo bastante interessante. Foi mais ou menos o que eu esperava encontrar. Percebi que, como sempre, a população mais vulnerável, exatamente os mais pobres, eram aqueles que estavam sofrendo mais com a pandemia. Fiquei bastante impressionado com o grande número de pessoas morrendo em casa. Dediquei boa parte do meu trabalho exatamente para registrar esses momentos”.
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