Isabella Botelho; 17/03/2020 às 08:30

Feminicídio: A Faceta Final do Machismo

Com certeza, ao longo de sua vida, você já ouviu a expressão “o machismo mata”. Mas a verdade é que poucas vezes paramos e nos perguntamos o que está por trás da morte violenta de uma mulher. A palavra “feminicídio” se refere ao assassinato de mulheres e meninas por questões de gênero, ou seja, em função do menosprezo ou discriminação da condição feminina. 

A palavra foi difundida na década de 1970 pela socióloga sul-africana Diana E. H. Russell. Com esse novo conceito, ela contestou a neutralidade presente na expressão “homicídio”, que contribuia para manter invisível a vulnerabilidade experimentada pelo sexo feminino em todo o mundo. 

Russell entende que essas mortes não são casos isolados ou episódicos, mas estão inseridos em uma cultura na qual a sociedade neutraliza e normaliza a violência de gênero, além de limitar o desenvolvimento livre e saudável de mulheres e meninas. São exemplos de feminicídio os crimes encobertos por costumes e tradições e que são justificados como práticas pedagógicas, como o apedrejamento de mulheres por adultério, relacionadas ao pagamento de dote, a mutilação genital e os crimes “em defesa da honra”. Assim como o assassinato de mulheres por seus maridos e companheiros, os estupros de guerra, a morte por preconceito racial e a morte pelo tráfico e exploração sexual, que tratam a mulher como objeto. 

Em razão dos altíssimos índices de crimes cometidos contra as mulheres, há a necessidade urgente de leis que os tratem com rigidez. Além disso, a nossa cultura, infelizmente, ainda se conforma com a discriminação da mulher por meio da prática, expressa ou velada, de misoginia. Isso causa a objetificação da mulher, resultando em casos cada vez mais graves de violência e, posteriormente, feminicídio. 

“O Brasil é machista, nossas raízes são machistas e nós vivemos esse machismo. A maioria das mulheres que morrem no Brasil, morrem dentro de casa, pelas mãos de seus próprios familiares e por arma branca. Nós somos o quinto país do mundo no ranking de feminicídio e, com isso, começou a se pensar numa maneira de punir esses agressores. Quando foi feito um estudo, ficou comprovado que o homem agia sob violenta emoção para ‘lavar sua honra’ e saia pelo tribunal de júri pela porta da frente, aplaudido pela sociedade brasileira”, afirma Débora Mafra, delegada titular da Delegacia de Crimes Especializados Contra Mulher. 

Estes fatores apresentaram justificativas suficientes para a implantação da Lei 13.104/15. Em 09 de março de 2015, a então Presidente da República Dilma Rousseff sancionou a Lei do Feminicídio, alterando o artigo 121, que define homicídio no Código Penal, e teve feminicídio incluso como um tipo penal qualificador, ou seja, como um agravante ao crime. A condição do feminicídio como uma circunstância qualificadora do homicídio o inclui na lista de crimes hediondos – crimes que são encarados de maneira mais negativa pelo Estado e têm uma pena mais cruel que os outros.

A tipificação do feminicídio como crime de gênero se faz necessária por estar diretamente ligado à violência de gênero e por ser um crime passível de ser evitado, principalmente às vítimas de violência doméstica, como explica a delegada Débora. “Um crime precisa de dois requisitos para ser considerado feminicídio: ser decorrente de violência doméstica familiar ou da aversão e discriminação à condição de mulher. O principal remédio para o feminicídio é denunciar. Um estudo no Brasil demonstrou que a maioria das nossas vítimas de feminicídio nunca denunciou e algumas que denunciaram voltaram com os seus parceiros.”

Esses números ainda podem aumentar drasticamente, já que parte dos homicídios de mulheres registrados poderiam também se enquadrar como feminicídios, assim como a maioria dos estupros de mulheres seguidos de morte devem ser consideradas feminicídios por terem como motivo o ódio e o desprezo pela mulher.

Cenário Local

Dentre os estados brasileiros, o Amazonas é o terceiro com maior proporção de casos de feminicídio a cada grupo de 100 mil mulheres residentes no estado. Esse é um dos indicadores apontados pelo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traz dados sobre violência contra as mulheres, da aplicação da Lei Maria da Penha e do poder judiciário no país em 2017. 

Os registros de feminicídio em Manaus tiveram um aumento de 300% de 2018 para 2019, segundo dados do Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp), divulgados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM). Ainda segundo o Sisp, entre janeiro e outubro de 2018, três casos de feminicídio foram registrados em Manaus. Já em 2019, o número quadruplicou. Foram 12 crimes contra mulheres registrados pela polícia durante o mesmo período.

No ano passado, a Polícia Civil do Amazonas, por meio das três Delegacias Especializadas em Crimes Contra a Mulher (DECCM), concluiu e encaminhou à Justiça amazonense um número recorde de inquéritos relacionados à violência doméstica contra a mulher. Entre janeiro e dezembro foram enviados cerca de 6.690 inquéritos, o que totalizou um crescimento de 28,3% em relação ao mesmo período do ano anterior. 

Crimes nestes moldes são registrados praticamente todos os dias no Amazonas, quase sempre praticados por um homem, seja ele companheiro, marido, namorado ou noivo. Também é importante ressaltar que existem casos que não são qualificados como feminicídio, desta forma, não é possível ter exatidão sobre os números apresentados, eles podem ser ainda maiores. 

Nossa sociedade ignora que não há um lugar seguro para mulheres neste país. Para elas, não há separação entre espaço público e privado: a morte está à espreita dentro de suas próprias casas, na rua, no transporte público, nos espaços de educação e lazer, em qualquer lugar.

Por trás de cada uma das histórias de mulheres violentadas, está o machismo estrutural. Historicamente, desde cedo, há incentivo para que meninos sejam quem quiserem ser, estudem e trabalhem fora. Já a condição feminina é voltada ao espaço doméstico e a submissão ao marido e, consequentemente, à família tradicional, imposta muitas vezes também através da religião. 

Ensinamos as meninas como devem se comportar para não serem assediadas e agredidas mas não ensinamos aos meninos como devem tratar e respeitar uma mulher. 

Para começar a mudar essa realidade, é necessário investir na educação a respeito das relações de gênero e em estratégias que promovam a reflexão por parte dos homens agressores. Medidas como essas estão previstas na Lei Maria da Penha, mas a execução ainda deixa a desejar. Além disso, é preciso retomar a prevenção primária, ainda na escola. Há pouco investimento do Estado para evitar que a violência ocorra. Somos uma sociedade machista e misógina, não haverá mudança sem uma educação para a equidade de gênero

“A Justiça pode punir, mas o que vai fazer com que os índices de agressões e mortes diminuam é a conscientização. Conscientização dos homens, de respeitar e cuidar, e das mulheres, de, em caso de violência, denunciar imediatamente e fazer valer seus direitos. O que vai mudar a nossa situação no Brasil é a educação”, afirma a delegada. 

Talvez apenas quando, num mundo novo com uma geração consciente, será possível vislumbrar a versão da mulher criada junto ao homem com os mesmos direitos e liberdade. Para então podermos ver conceitos como feminicídio e machismo apenas nos livros de história. 

Como denunciar e procurar ajuda

Se você for vítima ou conhecer alguém que precisa de ajuda, veja como denunciar e buscar acolhimento: 

Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher

As delegacias especializadas são uma das mais importantes portas de entrada de denúncias de agressão. A Lei Maria da Penha estabelece que, após o Boletim de Ocorrência (B.O.), o caso seja enviado ao juiz em, no máximo, 48 horas. A justiça também tem 48 horas para analisar e julgar a concessão das medidas protetivas de urgência.

PM – Disque 190

Quando não há uma delegacia especializada para esse atendimento, a vítima pode procurar uma delegacia comum, onde deverá ter prioridade no atendimento. Também há a opção de pedir ajuda através do telefone 190. Neste caso, uma viatura da Polícia Militar é enviada até o local. 

Central de Atendimento à Mulher – Disque 180

Outro canal de entrada de denúncias é a central telefônica Disque-Denúncia, criada pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM). A denúncia é anônima e gratuita, disponível 24 horas, em todo o país.

No Amazonas existem ainda o Serviço Assistencial e Psicológico Emergencial às Vítimas de Violência (Sapem) e o Centro de Referência de Amparo à Mulher (Cream), da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). 

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