Estamos no século XXI e a sexualidade e o prazer femininos ainda são tratados como tabus. Muitas mulheres têm vergonha ou simplesmente não se sentem confortáveis para falar sobre o assunto, seja em casa, na escola, com as amigas ou até mesmo com seus próprios parceiros. Este pensamento, de que mulher não deve falar sobre sexo, está enraizado e vem de muitos anos atrás.
Para entender porque a sexualidade feminina é tratada da forma como a conhecemos, precisamos voltar ao passado até chegarmos ao que seria o “início” da humanidade. Tanto na Bíblia, com a figura de Eva, quanto na Mitologia, com Afrodite, o corpo da mulher e sua sexualidade, respectivamente, teriam sido criados a partir do pedaço do corpo de um homem: a primeira veio da costela de um; a segunda, do pênis castrado de um deus. Esta ideia de que o corpo feminino era uma extensão do masculino se perpetuou por muitos anos em várias áreas do saber, inclusive na ciência: até o século XVII, os ovários eram conhecidos como “testículos femininos”, explica reportagem da Revista AzMina.
Outro exemplo é que desde a Grécia Antiga até o final do século XIX, acreditava-se que a histeria, um tipo de neurose, era uma “doença” exclusiva das mulheres, derivada da ausência de relações sexuais. O psicólogo francês Pierre Janet e, posteriormente, o psiquiatra Sigmund Freud, foram os primeiros profissionais a associar a histeria a causas psicológicas e não físicas, provando que a neurose pode acometer pessoas independentemente de seu sexo. Mesmo com este avanço, até o século XX, a histeria das mulheres era tratada com cirurgias – incluindo a remoção do útero – e remédios.
Do tratamento equivocado da histeria até hoje, muitos outros mitos sobre a sexualidade e o corpo feminino continuam sendo disseminados. Neste contexto permeado de tabus e desinformação, o prazer feminino se torna um assunto problemático que, com frequência, não ultrapassa as barreiras do consultório médico.
A verdade é que muito de tudo que conhecemos hoje sobre sexo, prazer e sexualidade foram definidos a partir da visão de homens. Numa sociedade machista e patriarcal como a que vivemos, seria estranho não enxergarmos tudo sob a ótica masculina. No entanto, a sexualidade feminina se refere estritamente a uma mulher, logo, apenas uma mulher pode explicá-la.
Primeiro de tudo, a desinformação está na base de sentimentos e confusões sobre a sexualidade e o funcionamento do próprio corpo, conforme explica a ginecologista e sexóloga Thais Silotti: “Muitas mulheres tratam a sexualidade feminina como um tabu e, infelizmente, isso acontece por falta de entendimento. A sexualidade levada como um tabu é a consequência negativa da falta de informação”.
Para resolver isto, o primeiro passo é tentar entender o seu próprio corpo e a única forma de entendê-lo é realmente conhecê-lo, como explica Thais. “Eu acredito que, hoje, o que as mulheres precisam saber sobre sua sexualidade é como seus corpos funcionam a favor do prazer. Esse conhecimento passa prioritariamente pelo entendimento do seu corpo. Como eu sempre oriento: pegue um espelho, se olhe, se toque, se entenda e se conheça. Só assim você vai saber como seu corpo reage e como ele consegue alcançar o prazer”.
Enquanto os homens aprendem desde cedo que sexo é algo “recompensador”, para as mulheres, sujeitas a abusos e violências, é algo ambivalente. Além disso, as pessoas acham normal os meninos se tocarem, “é bom pra ele descobrir o próprio corpo”, eles dizem, mas as meninas são repreendidas caso tenham o interesse de se tocar ou até mesmo apenas fazer questionamentos sobre seus corpos.
Esta censura leva mulheres a uma descoberta tardia e incompleta da sexualidade. É comum que muitas delas apenas vão a consultas com ginecologistas quando têm ou estão prestes a ter sua primeira relação sexual em busca apenas de métodos contraceptivos ao invés de também priorizarem sua saúde ou até mesmo prazer quando, na verdade, o acompanhamento deve ser feito desde cedo.
“O momento certo para procurar um ginecologista é a partir do momento em que a mulher menstrua ou até mesmo antes. Muitas meninas acompanham as mães na consulta e acabam conhecendo esse universo feminino. Procurar o ginecologista só quando vai iniciar a primeira relação sexual acaba sendo uma procura tardia e aí ela perdeu a oportunidade de aprender sobre prevenção”, explica Thais.
A saúde é para todas
Mesmo diante de um profissional, elas ainda não se sentem à vontade para falar sobre temas como orgasmo, sexualidade e prazer. Falar de sexualidade feminina sem falar em acompanhamento médico é impossível. No caso de mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, surge mais um desafio: o preconceito. Estudos comprovam que essas mulheres vão menos ao ginecologista. Diversos motivos são apontados para essa triste realidade: por medo de sofrer comentários preconceituosos e por conta de uma cultura que segrega.
“Hoje, nossa grande dificuldade em relação a orientação para prevenção de casais homossexuais é justamente pelo fato de ser um público que foi muito hostilizado e que ainda sofre muito preconceito. Então, é um público que ainda não tem muito acesso a profissionais da saúde com liberdade e autenticidade. Quando esse público tem essa acessibilidade, as orientações são as mesmas com apenas alguns adendos. Para casal homossexual feminino, por exemplo, nós sempre frisamos muito a importância da prevenção das IST’s e a prevenção da área íntima durante o sexo oral”, afirma a ginecologista.
Um estudo do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, de 2012, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, mostrou que apenas 2% das lésbicas se previnem contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s). Essa realidade passa muito pela desinformação, mas também pela falta de métodos de proteção desenvolvidos especificamente para elas, segundo reportagem da Revista AzMina.
Além das mulheres lésbicas e bissexuais, mulheres transexuais e travestis também enfrentam dificuldades quando o assunto é saúde sexual. Segregadas pela sociedade, elas não têm acesso à lições básicas da saúde sexual e nem à métodos de proteção, como explica Vallery Maria, que faz parte da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram): “Nunca houve a preocupação da criação de políticas públicas para educação sexual voltada para as mulheres trans e travestis. O que é supostamente ensinado está voltado para os homens e mulheres cisgêneros. Para ser mais clara, tudo que nós, mulheres trans e travestis, aprendemos é na vivência”.
A importância da educação sexual
Alimentado por ideais desatualizados de papéis de gênero e uma sensação de que a sexualidade feminina é, de alguma forma, vergonhosa, muitos mitos sobre mulheres e sexo simplesmente não morreram. Mas o que realmente estamos ensinando às nossas meninas sobre sexualidade?
Conhecimento é poder. Podemos – e devemos – incentivar uma relação mais saudável com o sexo, incentivando um diálogo mais aberto, ensinando as meninas, desde cedo, a se sentirem mais confortáveis com sua sexualidade e, o mais importante, enfatizando que seus corpos são exclusivamente delas. Para isto, é fundamental que exista uma educação sexual desde cedo.
Já passou da hora de normalizamos esse assunto e entendermos que conversar sobre a sexualidade feminina é necessário.
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