Patrícia Patrocínio; 15/03/2021 às 10:01

É preciso normalizar a presença feminina no Hip Hop

Desde que a cultura se apresentou no Brasil, lá pelos anos de 1980, mulheres sempre lutaram para conquistar seu espaço na cena

Em 1973, no Bronx, Nova York, Cindy Campbell convidou jovens do bairro para uma festa que marcava o início do ano letivo. A grande atração da noite era Clive, irmão mais velho de Cindy, que por sua grande coleção de discos era conhecido como DJ Kool Herc. Considerado uma lenda no bairro por dar origem ao formato ‘breakbeat’ — quando na mesa de mixagem o DJ rompe com um trecho e introduz outro  — com essa técnica ele formou novos ritmos, misturando a música disco da época, ao rock, pop, jazz e blues. Embora ninguém tivesse ideia do que estava prestes a acontecer naquela festa, foi assim que surgiu o Hip Hop, ao menos oficialmente. 

Transformando ruas em palcos

Mais que um gênero musical, é também uma cultura popular, suas primeiras aparições aconteceram na década de 70, nos guetos nova-iorquinos, em especial, no Bronx. Da mesma maneira, no Harlem e no Brooklyn, os moradores desses bairros são em sua maioria afro-mericanos e imigrantes. 

De frente com a exclusão social no qual eram submetidos por parte da administração pública, e em um contexto de excessiva violência e alta criminalidade, a juventude nesses lugares tinham somente as ruas como opção de lazer. Desse jeito, o Hip Hop surge como alternativa cultural perante à violência e a vulnerabilidade  econômica e sociopolítica. 

Apesar do caráter recreativo, ele também carrega um propósito social, em resgatar e orientar os jovens imersos nesses contextos, com o objetivo de redirecioná-los ao campo artístico. O DJ Afrika Bambaataa, fundador da ONG Zulu Nation, organização responsável por difundir os princípios e valores do Hip Hop, é quem institui o aspecto político-social ao movimento, e o conduz ao resgate e formação social da juventude nos guetos, oferecendo-lhes uma alternativa de experiência diferente daquelas encontradas no interior das ‘gangues’ — No Brasil o equivalente às facções criminosas. 

Percebendo o impacto positivo que essas práticas causavam nesses jovens, Bambaataa decidiu unir o DJ, o MC, o Break, o Grafite e o Conhecimento, estabelecendo assim, os cinco elementos do movimento Hip Hop.

Em solo nacional, o Hip Hop e o Rap deram seus primeiros passos no início da década de 80, e não se constituíram como mera cópia do estrangeiro, houve um processo de adoção de traços locais. Como por exemplo, enquanto música, o rap pretende evidenciar o cotidiano suburbano de pessoas consideradas não brancas no Brasil, e a realidade vivida nos ‘guetos brasileiros’ (popularmente conhecidos como favelas e subúrbios). Nos samples, os pequenos trechos musicais que fornecem as bases de um beat de rap, exploram sonoridades tipicamente brasileiras. Desse jeito, pelas dimensões do território brasileiro e sua pluralidade de culturas, em um processo de mistura e atribuição, o Hip Hop ainda é sujeito aos diversos regionalismos. No Rio de Janeiro, absorve-se o samba à batida; Em Fortaleza, o baião e o forró; No Amazonas, as toadas.

Hip Hop em Manaus

Pelo o que se conhece da história do Hip Hop na capital amazonense, especialmente, nas zonas leste e oeste da cidade. O Movimento surgiu em 1994. M.H.M, como foi chamado, atuou na promoção de projetos sociais voltados para a juventude das periferias de Manaus. De acordo com Santos, os cinco principais protagonistas desse cenário são: Mano FK, DJ e produtor de eventos; Rogério Árabe, renomado grafiteiro; S. Preto, MC no grupo Cabanos; Marcos Tubarão, DJ e produtor cultural; e Fino, MC, DJ e produtor cultural. 

A presença feminina no Hip Hop: uma questão sobre gênero e também racialidade

Em nosso levantamento, é evidente que existe um protagonismo masculino que deixa questionamentos sobre a participação feminina na história do Hip Hop. Se pararmos para analisar que inicialmente mulheres negras integravam os primeiros grupos de jovens dessa cultura. Abre-se o espaço de  pensar também essa situação através da questão racial, e de como socialmente essas mulheres são lidas, tanto por homens negros, quanto pela sociedade em geral. Somada à narrativa patriarcal, que não fere apenas a existência de mulheres de cor, é possível que o racismo tenha contribuído ainda mais para a fundamentação das ideias sobre gênero no Hip Hop. Ao longo dos anos e do crescimento do movimento atravessam a realidade das mulheres que participam. Como retratou Cida Aripória, integrante do Mulheres in Rima, em entrevista à Mercadizar.

“Naquela época, os homens sempre tinham os lugares de destaques, e para as mulheres sobravam apenas os bastidores, o back vocal ou ser a mina que acompanha, então tudo isso já me incomodava, mas ao mesmo tempo era o combustível para que eu escrevesse as minhas primeiras composições”

Mulher indigena do povo Kokama, Cida, está ativa no movimento Hip Hop de Manaus há 18 anos. Para ela, a cultura contribuiu para sua formação “ele  me escolheu, e agradeço ao universo não ter sido “salva” e sim escolhida. Cheguei pelo rap ao Hip Hop e não precisei ser salva por ele por não estar envolvida com algo como o crime, embora, tenha o convívio com essa realidade na minha comunidade. Porém, me agrada o termo “salvar” assim como “marginal”.  O hip hop me transformou na mulher que sou hoje, não alienada e em constante aprendizado.”

Participando de eventos da cultura desde 2003, a rapper relembra como eram os encontros do movimento “Aconteciam todas as sextas-feiras à noite, ouvindo o som em um micro system que sempre alguém levava, só tocava os clássicos como Rzo, Racionais mc’s, Visão de rua, clã nordestino, Actitud Maria Marta, Dina di, e os sons dos artistas do rap de Manaus. Na época, de artista local, tinha o União Periférica, Cabanos e Mensagem Positiva, eram poucos grupos daqui que tinham sons gravados, ouvíamos mais músicas ao vivo nos bailes que eram promovidos pelo MHM.”

Muitas ‘minas’ do hip hop se afirmam através da moda, apesar dela não ser efetivamente um dos pilares do movimento, mas ao longo do desenvolvimento da cultura se tornou uma relevante forma de expressão. Nesse contexto, precisamos destacar o caráter estratégico que a moda pode assumir em relação às mulheres no hip hop, que não usam roupas largas só por estética, mas também como defesa e resistência em relação ao machismo. Um exemplo dessa situação é o caso da paulistana Dina Di, no início de sua carreira, a rapper usava roupas largas e assumia um tom “masculino” em um movimento de “esquece meu gênero e respeita o que eu falo”.  

“Eu já fui questionada pelo meu grupo sobre as roupas que eu usava, sempre usei shorts curtos e não a calça larga, mini-blusas e não os blusões, em uma das nossas reuniões fui chamada pra explicar o porquê de eu não me vestir de forma masculinizada, como se a maneira que eu me visto me colocasse em uma situação de menor respeito ou não representatividade”, Afirma Cida. 

O que precisa ser considerado, é que não existe problema nas roupas largas ou no tom masculino, no entanto, deve-se prestar atenção  nos movimentos que levaram mulheres a adotar tais posturas. Às vezes precisamos refletir sobre coisas ‘óbvias’, tidas como naturais, ou pertencentes, não está sendo proposto a reformulação de nada, mas sim, a reflexão de tudo, inclusive dos elementos que sempre foram tidos propriamente como representativos da cultura Hip Hop. 

O que é ser mulher nortista no Hip Hop?

Desde que a cultura se apresentou no Brasil, lá pelos anos de 1980, mulheres sempre lutaram para conquistar seu espaço na cena. Esse fato foi levado em 2010 para o primeiro Fórum Nacional de Mulheres no Hip Hop, após ele, foi fundada a Frente Nacional das Mulheres da cultura, um projeto tem como objetivo destacar a importância da participação feminina na sociedade, por meio de atividades temáticas voltadas à cultura, política e cidadania. A principal luta por parte dessa iniciativa é sobre a valorização da identidade feminina, dando destaque não só à questão racial e social, mas fazendo com que isso seja trabalhado junto com as ideias de  normalização da presença feminina na cultura.  

Embora a liberdade de se apresentar como mulher do Hip Hop esteja em crescimento por conta da pauta feminina e de mulheres que lutam pela conquista de espaços antes não ocupados, uma das maiores questões que ainda parecem não ser superadas é: o Hip Hop é coisa para mulher?’. 

“As maiores dificuldades são a não aceitação de algumas pessoas em relação ao nosso trabalho dentro da cultura, além de sermos sempre indagadas sobre o porquê de estar fazendo rap e há pessoas que ainda afirmam que isso talvez não seja a “nossa praia”. Assim também como em toda profissão, mulheres são sempre confrontadas em relação a qualidade e execução daquilo que produzem, geralmente as pessoas sempre esperam e criticam mais a produção de uma mina no rap. Sempre é mais comum a não aceitação do nosso trabalho. Como se pelo fato de ser mulher, nossos projetos representassem algum tipo de falha.”, relata Halaíse Asaf,  20 anos, Mc e ativista do movimento. 

 Atualmente, Halaíse coordena o projeto Slam Poesia, cuja missão é possibilitar que poetas marginais possam ter espaços para expor suas composições, valorizando seus potenciais e buscando trazer visibilidade a eles. Além disso, através dessa iniciativa a artista consegue trazer discussões importantes para o público do evento, inclusive, na sua opinião é o que falta para a cena do Hip Hop nortista, afirma ela.“A cena do rap no geral, em especial, a nortista tem muito a melhorar. É claro, tem muitos temas que devem ser abordados sobre o papel importante da figura feminina e coisas que devem ser desconstruídas nas batalhas. Mas é necessário enxergar não só a diversão de batalhar, como também os conteúdos que são importantes de debater nesses ambientes e de quebra, trazer o rap como ferramenta de educação. Às vezes as pessoas esquecem o real sentido do hip hop.”

Ao fazer o recorte regional, identificamos também que ser mulher nortista no Hip Hop é um ato de enfrentamento em muitas instâncias, não só pelo viés do gênero, cor ou classe, mas também pela questão geográfica. Sabemos que viver de arte e cultura implica em uma série de dificuldades no nosso país, especificamente no norte, que sofre com um processo de invisibilização histórica de muitos séculos. Nossa arte, nosso povo e nossa cultura, são reduzidos ou até mesmo ignorados. 

 O Hip Hop nunca foi masculino,  elas foram invisibilizadas 

Uma cultura se caracteriza por ter uma expressão própria, onde pessoas se sentem identificadas. Desse jeito, ela se torna a oportunidade de representação e afirmação desses sujeitos,  atravessando qualquer um independente de gênero ou outras questões.

O escritor indiano George Orwell certa vez escreveu ‘‘a história é contada pelos vencedores”. Ou seja, quem consegue impor a sua narrativa. Sendo assim, a versão de quem tem o poder de decidir quais figuras terão destaque, ou não. Posto isso, quem são as mulheres que não estão presentes na narrativa do Hip Hop? Precisamos trazer à luz essas inquietações, para que seja superada a ideia de que o espaço legítimo nessa cultura só pertence aos homens. Por isso, é necessário recuperar essa história e redistribuir o protagonismo. 

 

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