Na era do cancelamento, ou você já foi cancelado ou ainda será.
Mais do que nunca, tornou-se comum ler por aí nas redes sociais as palavras “cancelamento”, “cancelado”, “ban” ou “close errado”, mas de fato, você tem ideia de como a expressão ganhou força nos últimos tempos?
Ao certo, não há um ponto de partida de como tudo começou, mas o movimento ganhou grande expressão quando uma série de acusações de abusos sexuais cometidos pelo cineasta Harvey Weinstein vieram à tona, com denúncias feitas por várias atrizes de Hollywood.
O ocorrido ganhou grande notoriedade nos meios de comunicação, principalmente na Internet, onde a hashtag #MeToo surgiu e uniu vítimas de crimes sexuais. A cultura do cancelamento, então, surgiu como uma iniciativa de conscientização e interrupção do apoio a um artista, político, empresa, produto ou personalidade pública devido à demonstração de algum tipo de postura considerada inaceitável. Normalmente, as atitudes que geravam essa onda eram do ponto de vista ideológico ou comportamental.
Desde então, a ação de cancelar algo ou alguém ganhou uma forma muito mais expressiva. “Cultura do cancelamento” foi até mesmo eleito como o termo do ano em 2019 pelo Dicionário Macquaire, um dos responsáveis por selecionar anualmente as palavras e expressões que mais moldaram o comportamento humano. Trata-se de uma eleição que leva em conta a língua inglesa, mas que, por meio das redes sociais e da comunicação, sempre acaba escorrendo para outros idiomas.
No entanto, com o passar do tempo, a proposta inicial de conscientização se perdeu e a cultura do cancelamento apenas se tornou mais do linchamento virtual que já estávamos acostumados a ver nas redes sociais. A pesquisa “Cultura do Cancelamento: o que é, do que se alimenta, como se reproduz”, lançada pela agência Mutato em julho, aponta justamente essa mudança. Segundo o levantamento, o foco do cancelamento se diversificou, tornando qualquer pessoa, que fale de qualquer tema, passível de críticas em massa, como afirma Bruno Honório, Analista de Pesquisa e Estratégia da Mutato e um dos autores do estudo, em entrevista à Mercadizar.
“A cultura do cancelamento, em seu estágio atual, tem gerado mais consequências negativas do que positivas como o apagamento de questões sociais extremamente importantes para a sociedade e também para a comunicação. Na Mutato, acreditamos que a consequência positiva da cultura do cancelamento é a mudança de comportamento, caráter negativo para a evolução da marca ou pessoa cancelada. É um movimento difícil e doloroso para quem passa mas se não gera mudança não é de fato efetiva”, explica.
Durante a quarentena, a impressão que se tinha é de que os usuários estavam ainda mais atentos a tudo o que acontecia ao redor. Com senso crítico aflorado, os internautas mostraram-se mais incisivos e com pouca tolerância para aceitar comportamentos questionáveis.
A 20ª edição do Big Brother Brasil, reality show da Rede Globo, por exemplo, atraiu todas as atenções da “central de cancelamento”. Sem tanta popularidade por conta da sua falta de ineditismo e narrativas repetitivas nos últimos anos, o programa viu sua audiência crescer em meio à pandemia, tornando-se praticamente um fenômeno cultural da quarentena. Não houve um dia sequer em que o BBB20 não estivesse entre os assuntos mais comentados do país na Internet.
Este ano, o enredo parece ter sido orquestrado pela produção através das escolhas para o elenco do reality: de um lado, mulheres feministas e empoderadas, do outro, homens machistas. Essa dualidade, somada a um time de influenciadores convidados e a quarentena, conseguiu insuflar as redes como talvez nunca visto antes, chegando a transcender para outros aspectos da vida cotidiana, como o futebol, e unindo celebridades brasileiras como Bruna Marquezine e Bruno Gagliasso em campanhas de votação.
Dos 15 participantes, todos, em algum momento, foram cancelados no tribunal da Internet, seja por uma fala racista, por atitudes machistas ou por escolhas de jogo. No entanto, diferentemente do cancelamento usual, em que os artistas são apenas boicotados, no caso do BBB, bastava votar para que o cancelado fosse eliminado com altas taxas de rejeição, como aconteceu com Daniel, Hadson e Petrix.
A pandemia nos possibilitou perceber com facilidade comportamentos pra lá de contraditórios, protagonizados, principalmente, por famosos e seu grande alcance de público nas redes sociais.
Durante o isolamento social, o caso mais comentado foi o da influenciadora Gabriela Pugliesi, cancelada duas vezes no mesmo período: no início do recolhimento, por levantar a reflexão de que o coronavírus veio nos lembrar o lado bom da vida. Em seguida, o acontecimento de maior repercussão foi a festa privada entre amigos, organizada em sua casa, contrariando e desrespeitando todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), num momento em que os casos confirmados de Covid-19 estavam em crescente evolução no país.
A consequência ou até mesmo inconsequência de seus atos trouxeram grandes problemas para a sua imagem pública e, principalmente, profissional. A influenciadora foi julgada no tribunal virtual pelo seu comportamento e, em questão de horas, foi oficialmente cancelada. Os desdobramentos da atitude de Gabriela, que foi uma das primeiras celebridades a informar que testaram positivo para a doença no país, foram muito além das críticas do público e tiveram impactos comerciais: causaram a perda de seguidores e encerramentos abruptos de contratos de trabalho. Pressionadas nas redes sociais, diferentes marcas anunciaram a suspensão de patrocínios e parcerias com a empresária e outros influenciadores que estiveram no local.
As empresas Liv Up, Baw Clothing, Desinchá, Hope, Rappi, Mais Pura, Kopenhagen, Seara, Fazenda Futuro, LBA, Schutz e Studio Velocity foram algumas das empresas que encerram os trabalhos com Gabriela. A Seara também finalizou a parceria com Mariana Saad, influenciadora que também estava na festa.
No dia seguinte, após toda a repercussão negativa, Gabriela Pugliesi pediu desculpas através de vídeo publicado em suas redes sociais. Além dos patrocinadores e contratantes, ela também perdeu cerca de 100 mil seguidores em menos de um dia. Posteriormente, a influenciadora desativou sua conta no Instagram, retomando apenas em julho.
Esta não é a primeira vez em que criadores de conteúdo têm seus contratos rompidos após se envolverem em polêmicas nas redes sociais. Cada novo caso reabre o debate sobre a responsabilidade social dos influenciadores e a importância do posicionamento. Afinal, como o nome já diz, eles são responsáveis por influenciar milhões de pessoas que os acompanham.
“A cultura do cancelamento é algo que tornou influenciadores em marcas, porém com maior cobrança devido ao fato das pessoas se sentirem mais próximas deles do que de marcas. Com isso, surge a necessidade de posicionamento, principalmente com tempos tão polarizados quanto os que vivemos. E sim, é importante que eles se posicionem, o nome mesmo diz ‘influenciadores’, eles influenciam pessoas e estas querem saber se quem elas seguem têm os mesmos valores e princípios. Ao não se posicionar, os influenciadores serão julgados por se omitirem e isso pode ser muito mais negativo do que assumir seus posicionamentos”, explica Bruno.
Naturalmente, surgiram inúmeras ponderações de como é importante para as marcas a vinculação de produtos e o cuidado necessário na hora de escolher seus embaixadores, pois, no fim das contas, eles serão o veículo de divulgação até o comprador final. No cenário de caos, a rapidez das marcas para gerenciar a crise instalada foi pontual, pois além da vinculação de imagem, também abria margem para o questionamento de valores das empresas envolvidas, principalmente pelas circunstâncias da época, visto que hoje em dia não é mais suficiente apenas a apresentação de um bom produto, mas sim o conjunto da obra: conceito, compromisso e qualidade.
“As marcas são grandes termômetros políticos e sociais, seu posicionamento é tão importante quanto o de que influenciadores pois muitas vezes os dois estão ligados e se faz importante que ambos sigam valores semelhantes caso trabalhem juntos. Marcas precisam se posicionar nas redes sociais e mostrar seu posicionamento também em ações práticas para seus consumidores, não basta um anúncio em seu site, ações práticas valem mais do que lindas campanhas”, continua.
Com o coronavírus, surgiu a necessidade de informar a população e estimular a quarentena para aqueles que pudessem ficar em casa, além de abordar também outros temas, desde questões financeiras até a saúde mental. Esta maior demanda por responsabilidade acelerou uma transformação que já estava em curso no marketing de influência: o posicionamento. Cada vez mais as empresas querem associar suas imagens a influenciadores ligados a uma causa e capazes de criar conteúdo relevante, não apenas vender produtos, conforme Bruno explica.
“Um ponto importante é que tanto marcas quanto influenciadores passaram a se relacionar a partir da conexão de princípios, valores e filosofias e não simplesmente a partir da ligação com determinado produto. Além disso, marcas tem visto a importância da diversidade de pessoas em suas campanhas pois sabem que a cultura do cancelamento além de gerar boicote também é uma cultura de cobrança por posicionamentos corretos e inclusivos”.
Assim, o posicionamento de empresas e famosos passou a ser cobrado cada vez mais pelos seus seguidores e fãs, justamente por darem voz à causas negligenciadas há tanto tempo pela sociedade. Em contrapartida, a grande maioria não leva em consideração que pessoas públicas são tão falíveis quanto as anônimas e que estão sujeitas a errar em qualquer momento, inclusive as ditas mais politizadas e maduras.
Existe limite para o cancelamento?
Certamente, o que se faz necessário é o uso do bom senso em cada uma das situações, visto que as circunstâncias nunca serão as mesmas. O diálogo é importante para a troca de ideais e opiniões, afinal de contas, não existe uma verdade absoluta, e buscar entender o lado de quem foi boicotado não é simplesmente “passar pano” ou absolvição de culpa, mas sim o incentivo a reflexão e autocrítica, como afirma a influenciadora e atriz manauara Evelyn Félix, em entrevista exclusiva à Mercadizar.
“Eu já fui cancelada, já fizeram petição para eu excluir meu perfil no Instagram, já fizeram ‘exposed’. A gente não espera o linchamento nas redes sociais. Você debater, discutir e apresentar argumentos, está tudo bem, você consegue ter uma conversa saudável, mas, sinceramente, pra mim, a cultura do cancelamento é extremamente desnecessária. Não vai adiantar você cancelar outra pessoa. Na verdade, você não cancela outra pessoa, é meramente ilustrativo. Muitas pessoas falam coisas absurdas e eu sempre me coloquei no lugar da outra pessoa. Depois que acontece, muitas pessoas apenas pedem desculpas por não quererem ser julgadas, por pressão”.
Na edição do Oscar de 2020, o ator Joaquin Phoenix, ganhador da categoria de Melhor Ator pela sua intepretação de Coringa, fez um discurso forte e pontual falando do mundo em que vivemos, defendendo aqueles que não possuem voz para lutar por si e agradeceu àquelas pessoas que não fecharam as portas para ele nos momentos difíceis, que acreditaram no seu poder de mudança e que, logicamente, não o cancelaram. Já imaginou o que teria acontecido se tivessem o boicotado sem oferecer uma segunda chance? Provavelmente teríamos perdido uma das melhores interpretações do personagem desde Heath Ledger, em 2008.
E se, de fato, pararmos e refletirmos, não chega a ser radical e extremista simplesmente anular a existência dos cancelados? A contradição faz parte da natureza humana, somos seres volúveis e plurais, sempre em constante mudança. O amadurecimento chega para cada um de formas e em tempos diferentes, para uns muito cedo e, para outros, já tarde, depois de vários tropeços e escolhas erradas.
Não existe resposta certa e nem fórmula secreta que decrete o futuro dos “cancelados”, mas sempre haverá o espaço para o diálogo e entendimento do posicionamento negativo que os levaram a posição de réu. Certamente, a atitude ideal a se tomar em uma situação desse tipo é: transmitir sinceridade ao pedir desculpas, pontuando o que foi absorvido durante o processo e, principalmente, praticar o que se aprendeu. Não existem “fadas sensatas” donas de verdades absolutas e irredutíveis. Nossas experiências, boas ou ruins, nos transformaram em quem somos, e justamente por sermos seres em constante evolução, nada melhor do que nos permitir baixar a guarda e procurar entender o porquê dos apontamentos.
Que atire a primeira pedra quem nunca cancelou alguém, ainda mais em tempos como os que vivemos. Não queremos minimizar erros, defender a impunidade ou “passar pano”, mas sim levantar um questionamento: não se tratando de crimes ou cobranças extremamente necessárias de pessoas influentes (como políticos e artistas), será que a cultura do cancelamento não mais atrapalha do que ajuda?
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