Nossas primeiras lembranças afetivas relacionadas a comida vem de nossas mães ou avós. São cores e sabores que marcam nossas vidas para sempre, basta sentir um cheiro e, em milésimos de segundos, estamos em outro tempo, em outro lugar, com outras pessoas. Aquele café com bolo no fim da tarde, o almoço de domingo, a família reunida na cozinha dando pitaco ou aprendendo uma nova receita. A maioria dessas lembranças te remete a presença feminina, certo?
Gerações cresceram ouvindo que lugar de mulher é na cozinha. Comumente, esta frase é dita na tentativa de inferiorizar a importância da mulher na sociedade. Até meados do século XX, o papel da mulher na sociedade era cuidar de sua família e, nesta época, cozinhar era uma tradição familiar restrita apenas à nutrição. Estar à frente do fogão era considerado um serviço menor que, tecnicamente, não exigia “requisitos intelectuais”.
Com o tempo, esta realidade mudou. As mulheres saíram de casa para estudar, trabalhar e ocuparam outros espaços na sociedade. Por outro lado, muitas delas optaram, por conta própria, continuar em casa e se dedicar integralmente às famílias. Para todas estas mulheres, cozinhar pode ter significados muito diferentes. Além de ser um dos principais e mais sinceros atos de amor, pode ser também a principal fonte de renda.
Atualmente, no Brasil, muitas delas tiram seu sustento da venda de comidas e doces. Conversamos com três mulheres de diferentes idades e regiões do país que compartilham a mesma paixão e jornada na culinária: Nice Porto e Rosangela Ferreira, ambas de São Paulo, e Maria de Lourdes, de Manaus.
Rosangela Ferreira (São Paulo, SP)
Rosangela Ferreira é uma confeiteira de mão cheia, como reza o dito popular. Hoje casada e mãe de uma menina de 7 anos, desde criança ela sonhava em trabalhar com arte e ajudava a mãe, que fazia bolos, doces e salgados para complementar a renda da família. “Eu amava enrolar docinhos e moldar as coxinhas na mão, mas nunca imaginei que iria trabalhar com doces e bolos na vida”, conta.
“Eu ficava observando minha mãe cozinhar e achava incrível! Como a mistura de ingredientes se transformava em coisas tão deliciosas! Eu ficava sentada observando e a ajudava quando ela permitia, me sentia a ‘chef de cozinha’”, complementa.
Seguindo o conselho dado por um professor na adolescência, Rô, como é carinhosamente conhecida, guardou seus sonhos numa caixinha e optou por um caminho “pé no chão”. Casou-se ainda nova, aos 22 anos, e, junto ao marido, cursou Administração. Posteriormente, fez faculdade de Design de Moda e, quando achou que finalmente seguiria seu coração e trabalharia com moda, a carreira não vingou. Os salários já não eram o suficiente e, diante da necessidade de ter uma renda extra para terminar sua casa, ela ouviu de uma amiga: “Rô, por que você não vende doces e bolos? Eu amo seus docinhos, você tem talento! Por que você não tenta? Para provar que confio em você, vou encomendar o bolo de aniversário do meu esposo, quero um bolo para 30 pessoas”.
“Eu falei pra ela: ‘Você é louca, não sei fazer um bolo tão grande!’, mas ela confiou em mim. Até hoje me lembro do sabor: bolo de baunilha recheado com doce de leite, abacaxi e coco Sococo. Dali em diante não parei mais. Daquela festa de aniversário surgiram 2, 3 e muitos outros pedidos”, explica entre risadas.
Quando viu a oportunidade da confeitaria se tornar um trabalho fixo e que podia viver dela, Rosangela começou a estudar e, consequentemente, se apaixonar ainda mais pela área. No entanto, ela ainda trabalhava num escritório de advocacia, onde ficou por 8 anos, e não conseguia mais conciliar as duas jornadas. “Me lembro que trabalhei até às 04h da manhã e logo depois saí para trabalhar, fui virada de um dia para o outro e não conseguia me concentrar no trabalho. Comecei a perceber que não ia conseguir e eles também, foi aí que eles me dispensaram e ainda me pagaram um curso incrível de confeitaria com a renomada professora Janaína Suconic, um curso incrível! Daí fui me aperfeiçoando dia após dia”.
Em entrevista à Mercadizar, ela contou que o apoio de seu marido foi essencial para seguir esse sonho, mesmo diante das incertezas colocadas pela pandemia do coronavírus. “Meu esposo sempre foi meu degustador profissional. Ele me ajudou muito, sempre me motivando a crescer e a estudar mais e mais, mesmo ele “perdendo a atenção” todos os finais de semana, pois são os dias de maior trabalho por aqui. Mesmo com todos os percalços, mesmo com as dificuldades de ser MEI e em meio a essa pandemia devastadora, estou conseguindo trabalhar todos os dias e isso tem sido uma vitória! A confeitaria mudou e está mudando minha vida. Através dela adquiri mais amor e empatia, pois é impossível produzir doces sem amor”.
Segundo ela, um de seus maiores diferenciais é a qualidade dos produtos que utiliza em seus doces – além do amor, é claro. Esta característica e autoexigência, herdada de sua mãe, que sempre prezou pelos mesmos princípios, lhe renderam uma parceria de sucesso com a Sococo, empresa brasileira de produtos feitos de coco. “Minha mãe sempre usou Sococo e, quando comecei a trabalhar, os marcava em todos os meus trabalhos e nunca imaginei que eles iriam ver as publicações ou que por acaso entrariam em contato. Mas, para minha surpresa, o departamento de marketing da Sococo entrou em contato. Eu fui convidada a participar de um concurso de confeiteiros e fiz um convite, disse que seria muito bom se a Sococo participasse e de pronto eles aceitaram! Quando eles apareceram no dia do concurso, tive a certeza que estava criando uma parceria para a vida. A Sococo tem grande parte de culpa neste sonho, pois quando se é visto por uma empresa de grande porte, quando seu trabalho é reconhecido e incentivado pelos mesmos, você começa a ter certeza que sim, você está no caminho certo”.
Rô explica que assim como a culinária, a confeitaria, mais especificamente é muito dominada por homens e que esta realidade muda a passos ainda muito lentos. “Sou muito grata pela luta de várias mulheres que nos antecederam nesta área. Sou mulher, preta e moro na periferia, sei que se não correr atrás dos meus sonhos, se não pedir ajuda a Deus e correr mesmo atrás dos meus objetivos eles jamais me alcançarão, então o que me resta é estudar muito, sempre dar o meu melhor e fazer parcerias de peso para seguir em frente e um dia realizar meu sonho que é ter uma confeitaria com tons pastéis de rosa e lilás, com flores, cadeiras e mesas brancas, com muitos, muitos doces deliciosos!”.
“Meu conselho às mulheres é que sim, se empoderem, sejam fortes e corajosas e mesmo que venham lhes dizer que vocês não podem, vocês podem! Eu consigo e vocês também podem conseguir!”, completa.
Nice Porto (São Paulo, SP)
Nascida em Itaobim, Minas Gerais, e criada em São Paulo capital, para onde se mudou aos 7 meses, a confeiteira Nice Porto é uma das pessoas que teve sua vida transformada pela culinária. Aos 51 anos, mãe de 5 e avó de 3, como se apresenta, o trabalho com a cozinha é um de seus maiores orgulhos e principal fonte de renda.
Sua história com a cozinha começou ainda muito cedo, mais precisamente aos 11 anos de idade. À época, sua tia faleceu no dia em que as próprias filhas completaram 9 anos e Nice resolveu, alguns dias depois, preparar um bolo para as primas porque, como explicou, ninguém fica triste quando come bolo. “Pena que naquela época não tínhamos fácil acesso às câmeras fotográficas para registrar aquele momento”, completa.
Desde muito cedo, Nice assumiu grandes responsabilidades. Em entrevista à Mercadizar, ela contou que, na infância, seu pai abandonou sua mãe, que precisou trabalhar fora para sustentar a família. Mesmo com dois irmãos mais velhos e ainda muito nova, a confeiteira precisou cuidar da casa.
Precoce, como ela mesmo se intitula, aos 13 anos de idade, ela já se sentia como se tivesse 25, conta. Nessa época, começou a namorar e, três anos depois, engravidou do primeiro filho, tornando-se mãe a poucos dias de completar 17 anos. “Eu me sentia tão segura e dona de mim, que decidi parir em casa e não fui para o hospital, enfrentando um parto natural de 8 horas auxiliado pela avó do meu marido. Ali nasceu também a Nice guerreira”.
Três anos e meio depois, nasceu sua segunda filha. Até aquele momento dona de casa, Nice decidiu trabalhar informalmente para não ser dependente financeiramente do marido. “Segui minha vida sendo mãe e dona de casa. Nessa ocasião, comecei a vender roupas e logo a culinária entrou na minha vida. Comecei a vender churros na porta de um supermercado para ter uma ocupação e também algum dinheiro, já que meu marido era assalariado e, apesar de termos uma vida confortável, eu não queria depender de homem para tudo”.
Mais três anos se passaram e, apesar de feliz com a maternidade, ela percebeu que não tinha a mesma felicidade no casamento. Seu marido, apesar de bom pai e provedor, não deixou de fazer o que gostava, como ela explica. “Ele não abandonou seu jogo de futebol, as cervejadas com os amigos. A bebida era algo que me incomodava demais, pois ele se tornava agressivo, até que, após minhas reclamações, começaram as agressões físicas… Então decidi dar um basta, separei e voltei a estudar, arrumei um emprego, primeiro de vendedora em loja de roupas feminina e depois em uma indústria de tecidos”.
Neste último trabalho, Nice conheceu seu segundo marido e pai de seus outros 3 filhos. Após uma relação de mais de 20 anos já desgastada, também se separou. Foi neste momento que a culinária voltou para a sua vida e, desta vez, para ficar. “A culinária me ajudou muito enquanto meus filhos eram pequenos. Da máquina de churros, passei a vender tortinhas de porta em porta no condomínio em que eu morava. Nunca paguei para fazer os bolos de aniversário para meus 5 filhos e sempre procurei fazer coisinhas diferentes que encantavam a família e os convidados. Até que passaram a surgir encomendas, a oportunidade de fazer uma pauta para uma revista, programas de TV, e consegui me tornar instrutora de uma grande empresa no segmento de confeitaria… Comecei a dar aulas no Brasil inteiro”, explica.
Um ano após a segunda separação, ela conheceu o grande amor de sua vida, Paulo. “Nós estávamos tão apaixonados que 6 meses depois já estávamos morando juntos. Ele, 12 anos mais velho que eu, um pesquisador científico, com pós-doutorado na Europa, e eu com pós-graduação na vida”, conta emocionada.
Com o tempo, as viagens a trabalho foram reduzidas e Nice abriu mão de trabalhar comercialmente e, incentivada por Paulo, criou a Associação Doce Viver, uma instituição sem fins lucrativos, e desenvolveu um projeto social com renda revertida para o Hospital do GRAAC com participação de várias personalidades famosas. Numa viagem ao Rio de Janeiro para divulgar o trabalho, seu companheiro teve um infarto fulminante e não resistiu.
“Viajei com meu amor e retornei com um caixão. Meu mundo ruiu, não apenas pela morte, mas por conta da situação que veio depois… Quando fui morar com o Paulo, ele me disse que era separado há mais de 7 anos, situação confirmada pela mãe e pela filha mais velha, porém não era bem assim, ele continuava casado no papel com a outra mulher. Por uma questão totalmente patrimonial, toda família dele me virou as costas no momento que eu mais precisei, e passei viver um verdadeiro pesadelo”.
Hoje, Nice luta na justiça pelo reconhecimento de sua união estável com o ex-companheiro. Um de seus objetivos para este ano é lançar um livro e também cursos de empoderamento social para mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade, incentivando, principalmente, mulheres a conhecerem seus direitos.
Ao longo de sua carreira, Nice fez importantes parcerias com empresas do ramo culinário, incluindo a Sococo, atualmente uma de suas principais apoiadoras. “As parcerias são sempre importantes, especialmente para os projetos sociais. A maioria das empresas enviam produtos para as nossas ações, isso fortalece os projetos. Juntos sempre somos mais fortes. Inclusive, recentemente desenvolvi uma receita de jóias comestíveis para a Sococo que foi um sucesso, criei vídeos para o Reels e Tik Tok, foi incrível”, ressalta.
“Hoje eu só quero retomar a minha vida, seguindo em frente com os meus propósitos e decisões tomadas antes do Paulo falecer. Tenho muito para realizar, quero inspirar outras mulheres, e desenvolver muitos projetos, envolvendo, educação, conhecimento, arte, cultura, meio ambiente. Na verdade, quero tornar o mundo um pouquinho mais doce, através da minha Associação e do Canal a Casa da Nice”.
Maria de Lourdes (Manaus, AM)
Aos 83 anos de idade, Maria de Lourdes já se aposentou, mas ainda faz doces para ocasiões especiais da família. Foram mais de 40 anos vivendo os deleites e desafios da confeitaria. Em entrevista à Mercadizar, ela contou que começou a fazer doces para complementar sua renda. À época, ela morava em Manaus com os três filhos ainda crianças e seu marido, tenente da Marinha, passava a maior parte do tempo viajando a trabalho.
“Eu comecei a fazer doces para os meus filhos levarem para contribuir com as festas de escola. Eu estudava muito, era muito curiosa, lia receitas, testava, experimentava e oferecia pra família inteira provar. Com o tempo, isso se tornou meu trabalho. Era algo que eu gostava de fazer e fazia com muita dedicação”.
As encomendas iniciaram pela própria família e, com o tempo, a procura aumentou, ultrapassando a barreira familiar. A cada novo trabalho, os docinhos da Dona Lourdes, como é conhecida, conquistavam mais pessoas e a procura aumentava. “Naquela época, era tudo muito luxuoso, as festas eram regadas a muitos doces e eu chegava a fazer de mil a 1.500 doces por evento, tudo com a ajuda apenas da minha irmã Marilene. Nós passávamos noites a fio acordadas, só nós duas, enrolando docinhos, colocando nas forminhas e confeitando bolos. Nesses dias, ficávamos conversando e parecia que o tempo nem passava, era muito rápido. Era tudo feito com muito cuidado e muito amor dentro de casa”.
Assim, ela criou 3 três filhos e, posteriormente, ajudou na criação de seus 8 netos. Somente em 2015, aos 75 anos, quando descobriu um câncer de tireóide, se afastou definitivamente dos fogões. Mesmo assim, ela conta que, teimosa, nunca deixou de fazer docinhos para sua família, principalmente com o nascimento de sua primeira bisneta. “Eu quis fazer todos os doces do aniversário de um ano da minha bisneta, não deixaram. Então, eu ajudei a fazer, mesmo que contra a vontade de todos. Fiz para todos os meus filhos e todos os meus netos, precisava fazer pra ela, que trouxe alegria pra minha vida”.
Quando perguntada qual o seu ingrediente favorito para trabalhar, respondeu sem pensar duas vezes: “O coco!”. Ela explicou que a fruta serve como ingrediente para os mais diversos doces, podendo ser utilizado como principal e também na finalização. “Você consegue fazer tudo com coco, mas os meus doces favoritos são beijinho e quindim, são minha especialidade. Tenho receitas próprias para esses doces, mas o meu segredo para manter o sabor único era a qualidade do coco. Durante todos esses anos, sempre usei Sococo, seja coco ralado ou leite de coco, nunca saíram da minha geladeira”.
Com muito orgulho, Dona Lourdes passou a paixão pelos doces de geração em geração. Hoje, mesmo aos 83 anos, ela lembra todas as receitas de cabeça, está sempre buscando novidades e é muito exigente com suas duas filhas e neta que seguiram seus passos: ela faz questão de provar cada um dos doces e bolos feitos e dar seu selo de aprovação e qualidade final.
Muitas de nós conhecemos Rosangelas, Nices e Marias. Através de suas mãos e talento únicos, elas ressignificam a culinária e, através de seus trabalhos, mostram que a cozinha, durante muito tempo o cômodo inferiorizado da casa, pode sim empoderar.
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