Mercadizar; 13/11/2020 às 09:00

Ataques à imprensa e a saúde mental dos jornalistas 

Conversamos com sete jornalistas sobre o trabalho durante a pandemia, os ataques à imprensa e a saúde mental

Entre os especialistas em saúde, há uma unanimidade de que, sem informação, é praticamente impossível superar a pandemia da Covid-19. Por isso, a imprensa e o jornalismo foram colocados no centro da crise e tiveram seus papéis – já essenciais – aumentados. Essencialmente, o trabalho de um jornalista vai muito além de meramente informar. Em situações como as que vivemos, o jornalista precisa, de forma acessível, traduzir informações e contextualizar de forma que o público reflita sobre suas implicações. 

Um estudo global divulgado pela agência de comunicação Edelman mostrou que, meio à pandemia, os veículos de grande imprensa apareceram como a fonte de informações mais confiável para 64% dos entrevistados. Antes disso, havia uma tendência de baixa credibilidade do jornalismo e também das fontes de conhecimento, como a ciência e a pesquisa. 

Mas em meio a uma situação de crise, as pessoas recebem e processam informações de forma diferente e, sobretudo, agem de maneira diferente. Com acesso diário e constante às mais diversas informações, 61,25% dos jornalistas brasileiros tiveram um aumento de ansiedade e estresse durante a pandemia, de acordo com uma pesquisa realizada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Além disso, a pesquisa também aponta perdas e reduções salariais, demissões e grandes mudanças na rotina de trabalho, o que também pode ter interferido na saúde mental desses profissionais. “Eu tive uma dificuldade muito grande de lidar com tudo no início, pois a proporção das coisas que você falava, escrevia e publicava era muito maior que o normal. Eu fui procurado por vários profissionais de diferentes lugares do Brasil que queriam entender a realidade do Amazonas e com isso, o nível de cobrança só aumentava”, disse Dante Graça, editor-executivo do Portal A Crítica. 

Se, por um lado, o jornalismo se tornou essencial e indispensável, por outro, a grande quantidade de informações e dados publicados na Internet gerou desorientação e um ambiente propício à disseminação de notícias falsas, as fake news. Além disso, ao longo da pandemia e diante do cenário político-social pelo qual o Brasil passa, os relatos de ameaças e agressões a jornalistas e profissionais da imprensa se tornaram rotina. Mesmo assim, eles seguiram e permanecem trabalhando para informar a população. 

No país, a imprensa tem sido alvo de ataques do presidente Jair Bolsonaro que, ao longo de seis meses, se referiu ao coronavírus como uma “gripezinha” e como uma “histeria” criada pela mídia. “O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo”, o presidente afirmou em 17 de março, quando também aproveitou a oportunidade para acusar “os grandes órgãos da imprensa” de perseguição.

Para falar sobre como a pandemia impactou em sua saúde mental e os ataques feitos à imprensa, a Revista Mercadizar convidou sete jornalistas, do Amazonas, Brasília e São Paulo, que contaram as suas experiências. 

Amanda Audi, repórter em Brasília do The Intercept Brasil

(Foto: Acervo Pessoal)

“Manifestações do presidente Jair Bolsonaro demonizam a imprensa e fazem com que os seus aliados se sintam empoderados para realizar certos ataques. Com a pandemia isso não mudou, mas acredito que ela tem ajudado as pessoas a verem a importância do jornalismo. Nós observamos que o governo não está sendo efetivo no combate ao coronavírus e muitas pessoas estão percebendo isso também, pois estão vendo familiares e amigos doentes. Nesse ponto me parece que um pouco da credibilidade da imprensa, que até então tinha se perdido por conta dos ataques, pode ter voltado justamente porque as pessoas temem pela própria vida e vão se informar nos meios de comunicação profissionais. É duro você confiar no que recebe pelo Whatsapp quando a sua vida está em jogo e isso ainda acontece, mas tem mudado”.

Dante Graça, editor-executivo do Portal A Crítica 

(Foto: Acervo Pessoal)

Eu tive bastante dificuldade neste período, além disso muita gente confunde o que é pessoal e o que é profissional. Teve uma situação específica em que eu comemorei no Twitter as unidades de saúde mais vazias em Manaus e eu fui cobrado jornalisticamente sobre isso, mas naquela situação eu fiz um comentário como cidadão e não como jornalista. Isso me deixou muito perturbado por um determinado momento e eu desencadeei vários gatilhos. Chegou uma hora que eu precisei me isolar mesmo e me afastar do trabalho por conta dessa situação toda. Ao longo dos anos, eu já tinha sintomas de depressão e agora ela ficou escancarada no meio disso tudo. Eu me isolei, passei dias sem trabalhar e fui buscar ajuda profissional. Eu precisei voltar para terapia, buscar ajuda psiquiátrica, estou tomando medicamento todos os dias para poder lidar e tocar a minha vida o mais perto possível do normal”.

Ivan Nascimento, Diretor de Jornalismo da TV Norte Amazonas

(Foto: Acervo Pessoal)

“Não temos como acionar uma chave e dizer: ‘agora é o Ivan pessoa’ e depois acionar o ‘Ivan Diretor de Jornalismo’. Precisamos ter consciência de que o seu termina quando começa o do outro e, principalmente, entender a limitação do outro e saber que cada um reage de um jeito. Lembro-me uma vez que estava no supermercado na fila do pão e um homem atrás de mim começou a assobiar sem máscaras. Olhei para ele, com um olhar de reprovação, mas ele continuou como se fosse uma provocação, olhei pra ele de novo, saí de onde estava e fui para o fim da fila de novo”.

“A maior dificuldade foi em casa, minha esposa ficava muito preocupada porque eu estava na rua todos os dias. Minha filha pequena ficou isolada com a bisavó, elas ficaram sozinhas. Eu passei mais de 5 meses sem vê-la, sem contato, falando apenas por telefone e videochamada. Tinha ido a São Paulo e depois não nos vimos mais. Festas de aniversários foram adiadas, tudo mudou. Foi muito difícil! Mas, nós, jornalistas, temos um compromisso com a sociedade e minha vinda para TV era importante também porque existem outras pessoas que dependem de mim. Procurei organizar isso na minha cabeça e temos conseguido”. 

Márcia Lasmar, apresentadora da TV Norte Amazonas

(Foto: Acervo Pessoal)

“O principal desafio foi lidar com as notícias, todos os dias muitas mortes e novos casos. Eu tenho que não é possível separar a vida profissional da pessoal. Nós tentamos nos manter numa determinada postura porque a apresentação exige, o dia a dia e a rotina na frente das câmeras fazem você ter um determinado comportamento, mas é muito difícil separar. Até porque quando  um ente seu fica doente, você não tem quem cuide, é você quem vai lá. Eu me comovi muitas vezes e penso que esse é o momento de humanizar. Não tem mais como passar aquele ‘robozinho’ para o público dizendo que não temos sentimento e que só estamos aqui para passar notícias. Nós nos emocionamos, sofremos juntos e torcemos pela saúde das pessoas”.

“Eu recebi ataques quando me posicionei para que as pessoas ficassem em casa e que o isolamento social fosse cumprido. Eu vi muitas pessoas morrendo e falei muitas vezes que as pessoas precisavam ficar em casa. Muitas pessoas se posicionaram falando que era muito fácil pra mim, mas eu estava com medo por mim, pela minha família e por todos”. 

Nauzila Campos, repórter da TV Encontro das Águas 

(Foto: Acervo Pessoal)

“A saúde mental do jornalista fica abalada neste momento totalmente atípico. Eu tenho 10 anos de telejornalismo e nunca passei por nada parecido, apesar de que já vimos muitas coisas no Amazonas, principalmente do ambiente político do Estado. A situação mexe muito com a gente, pois estamos falando de vidas e prospecção de mais mortes ou de vidas salvas. Todo dia é uma incógnita e a gente tem que se atualizar o tempo todo, além de se preocupar conosco e com os nossos familiares. Eu faço terapia e tenho acompanhamento psiquiátrico também. Tive crises de pânico e depressão durante a pandemia, mas tenho acompanhamento médico devido e tomo medicação. Faço todo o tratamento que é necessário e que todo mundo que sente os sintomas deveria fazer, pois é uma doença como qualquer outra”.

Neto Cavalcante, editor-chefe, apresentador e repórter da TV Band Amazonas

(Foto: Acervo Pessoal)

“É difícil não se envolver com uma situação tão delicada como essa. Tanto sofrimento de pessoas sem esperança de receber um atendimento de qualidade e morrendo em casa. Perdi um tio para a doença. Acho até que ter um caso na família, me fez respeitar mais a doença e tornar a cobertura jornalística da pandemia mais cuidadosa e humana. Acredito que essa pandemia foi também uma oportunidade (Não que se possa tirar algo de positivo da pandemia. Não podemos!), de separar o joio do trigo, com relação à credibilidade dos meios de comunicação e suas diferentes mídias. Pessoalmente, não recebi ataques. Mas minha equipe sim! Eram pessoas que acreditaram que era uma ‘gripezinha’ e que por histórico de atleta não deveriam se preocupar. Não gostavam quando eram filmados sem máscara ou em aglomerações. A orientação é não ligar para provocações ou ataques, mas não deixar de registrar”. 

Pedro Borges, editor-chefe da agência de jornalismo Alma Preta   

(Foto: Acervo Pessoal)

“Estamos em um momento em que a pandemia tem escancarado também as desigualdades raciais e isso tem sido difícil jornalisticamente de fazer e de acompanhar. Nós não temos esse tipo de dado no país que mostre o índice de contaminação entre mulheres e homens negros, então acredito que a falta de informação é nosso principal desafio ao lado da cobertura intensa que uma pandemia exige. Além disso, a gente precisa também respeitar os horários de descanso das pessoas. Eu e todo mundo precisamos de um tempo para descansar, esvaziar e reabastecer a cabeça nesse momento difícil e de muito desgaste. Enquanto jornalista negro, o cuidado é sempre triplicado porque a gente também está lidando com a violência que é a pandemia, as mortes desproporcionais de Covid-19, violência policial e há todo momento se vendo nestas pessoas”. 

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