Patrícia Patrocínio; 29/03/2021 às 20:00

A presença de corpos reais na internet

Quem nunca acessou uma rede social e depois de visualizar alguns conteúdos começou a se sentir insatisfeita com a própria vida (pessoal ou profissional), com o corpo, com a pele, com os cabelos? Quem nunca parou por alguns instantes na frente do espelho procurando por “defeitos’’ e em seguida imaginando como seria ter o corpo de uma determinada influencer, após ver a foto dessa mesma figura exibindo o “corpo ideal’’ na internet? 

Historicamente, o corpo feminino vive sob o olhar e pressão de alcançar uma perfeição humanamente impossível. Acontece que nos dias atuais tais ideias foram intensificadas por meio do uso das plataformas e mídias sociais. É comum, hoje em dia, seguirmos as digitais influencers ou formadoras de opinião capazes de influenciar multidões de seguidores, e cujas publicações mais parecem anúncios publicitários do que o dia a dia das pessoas em geral. 

Nossas telas são inundadas por imagens de rotinas, corpos e vidas perfeitas diariamente. Desse jeito, somos apresentados constantemente a um estereótipo de beleza e estilo de vida que não é facilmente alcançável, o que pode gerar um sentimento de insatisfação que ocorre por observarmos a realidade, e percebermos que ela não corresponde com aquilo que é visualizado todos dias em nossas telas. 

Segundo dados da pesquisa ‘Visão Global da Internet de 2020’ realizada em parceria com a ferramenta Hootsuite, que avalia as tendências das mídias sociais, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de populações que passam mais tempo nas redes sociais, com uma média diária de 3 horas e 31 minutos, atrás apenas de Filipinas (3h53) e Colômbia (3h45). Em um outro levantamento realizado pelo pesquisador M.Osman da Sprout Social, uma empresa de software de mídia social sediada em Chicago. Desde 2015, a presença de brasileiros no Instagram é maior do que a média global, em torno de 55% dos usuários de internet do país estavam presentes na rede social de fotografias naquele ano. Já em 2016, esse número subiu para 75%, em comparação a 42% da média global do mesmo ano. Segundo especialistas, uma das explicações para a grande presença desses usuários em aplicativos como o Instagram é a combinação de um país bastante social com uma crescente penetração de smartphones. 

Tecnologia x Autoestima

Os efeitos dessa exposição frequente podem ser vistos em todas as idades, mais especificamente, nas novas gerações de meninas e mulheres, que estão cada vez mais conectadas. Em 2019, o Jornal da Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos, apontou que os filtros de aplicativos podem estar provocando dismorfia corporal em jovens, levando a quadros de transtornos alimentares, ansiedade, depressão e busca por procedimentos estéticos radicais e desnecessários. 

Em um outro estudo realizado pela Academia Americana de Cirurgiões Plásticos, no Brasil, a bichectomia, procedimento que afina as bochechas, teve um aumento de quase 20% em sua procura, principalmente entre jovens de 15 a 25 anos. O mesmo levantamento também identificou que 55% das pessoas que fizeram rinoplastias, em 2017, foram motivadas a realizar esse procedimento pelo desejo de “melhorar” suas selfies. 

Um dos maiores problemas que as redes sociais podem provocar na nossa autoestima, tem a ver com a autoimagem, aquela que criamos sobre nós mesmas. À medida que aumentamos nossa presença nesses espaços virtuais, o impacto é ainda maior. 

Aceitar-se é um dos maiores desafios na vida de uma mulher, pois para isso temos que romper com a obrigação de seguir as tendências que nos são impostas desde o momento em que nascemos. No entanto, o que mais vemos na internet são os discursos rasos de autoaceitação incentivados muitas vezes por pessoas que fazem o uso de intervenções estéticas invasivas e que custam uma fortuna. Que fique claro, que o problema não é sobre poder ou não realizar tais procedimentos, mas sim, a esvaziação de sentido do discurso da autoaceitação. 

A quarentena vai mudar a nossa relação com o corpo? 

Diante de um contexto muito particular do novo coronavírus, muitas mulheres em isolamento social começaram a mostrar diversas situações do seu cotidiano, inclusive, seus corpos nas redes sociais. Com isso, o debate sobre um possível “corpo de quarentena”, gordofobia, autoaceitação e outras mobilizações sociais relacionadas à estética padrão na sociedade foram aos poucos constituindo o seu espaço nas redes sociais, durante esse período. 

Ficar em casa tem mudado os hábitos de algumas mulheres em relação às suas rotinas de beleza. Enquanto algumas redobram os cuidados, outras aproveitam este momento para repensar necessidades. “Se você não se depila na quarentena porque não está sendo vista por ninguém, tem certeza que se depila porque quer?”reflexões como essa estão cada vez mais presentes nas redes sociais desde que o distanciamento começou. Esse período tem favorecido a reconexão de pessoas com seus corpos, nesse contexto, a oportunidade de se apresentar ao mundo da forma como se sentem confortáveis tem permitido que muitas mulheres na pandemia, ressignifique seus corpos e a maneira que enxergam a beleza. 

Representatividade: a presença de corpos reais na internet 

Até pouco tempo atrás, a representatividade e pluralidade nunca foram objetivos em diversos espaços, e não que isso tenha mudado, esse tipo de tema hoje em dia ainda não recebe a devida atenção. Mas não podemos deixar de considerar, que o fato desse discurso começar a ser mais presente na mídia é muito importante para que as pessoas, especialmente mulheres, possam entender que nossos corpos são diferentes e que os corpos perfeitos não fazem parte da realidade da maioria das mulheres do mundo. 

É interessante lembrar que o espaço virtual não dá conta de expressar com exatidão a realidade, portanto, o mundo das redes sociais é falso, e com isso precisamos compreender que há uma predisposição em muitos usuários na internet de postar apenas aspectos positivos de suas vidas, seja por fotos posadas ou nunca demonstrando problemas reais, em muitos casos as mulheres que consideramos ter o corpo perfeito só escondem suas dobrinhas, celulites, estrias ou pêlos através de  edições.  

Nós sofremos com a ausência da representatividade de corpos diversos, mesmo que isso não fique tão claro no dia a dia. Sem a presença deles tanto nas redes sociais, como nas mídias em geral, não há como tornar possíveis transformações na sociedade, visto que para além da representação, a presença desses corpos plurais abre espaço para o debate. Nesse contexto, o lugar de fala se torna essencial, pois só pessoas que vivem o que falam, são capazes de chamar a atenção de outras, para diferentes assuntos sobre a realidade da qual estão sujeitas.

Um exemplo disso, é o caso de Andressa Osako, a influenciadora de autoaceitação e luta contra a anti gordofobia, em entrevista à Mercadizar explicou como foi começar a dividir suas experiências na internet e de que forma isso impactou a vida de outras pessoas, fazendo com que elas passassem a compartilhar suas próprias experiências com ela também. “Quando eu comecei, na verdade, não queria nada. Eu só comecei a dividir um pouco das minhas vivências, com as pouquíssimas pessoas que me seguiam na época, e do nada, outras pessoas começaram a chegar e pouco tempo depois, eu já recebia mensagens falando que de alguma forma pessoas se viam na minha história e com ela, eu conseguia ajudá-las. Se eu visse alguém falando sobre isso quando eu odiava meu corpo, se eu tivesse tido esse contato, talvez tivesse sido muito diferente, sabe? Talvez eu não teria passado por coisas que eu passei, talvez eu não tivesse me deixado levar tanto por um padrão que eu sei que é cruel, não teria deixado que ele me machucasse tanto, eu teria tido um espaço de representatividade, conversa, apoio e é isso que eu quero oferecer. “.

Andressa Osako

A influenciadora também aponta o quanto falar sobre essas questões na internet foi algo importante para o seu próprio processo de autoaceitação “falando sobre isso, eu percebi que era algo que eu gostava muito de fazer, que não tava fazendo só bem para as pessoas que me seguiam, tava fazendo bem para mim. Eu comecei a me amar muito mais, me entender e me aceitar muito mais, quando eu comecei a falar sobre autoamor, autoaceitação, empoderamento e gordofobia na internet”.

Sobre a troca e presença no ambiente virtual, Andressa, reforça que isso não ajuda só na construção de novos esquemas mentais associados aos corpos, mas também possibilita a divisão de um fardo muito pesado “falar abertamente do que me ajudou e o que não me ajudou, faz com que as pessoas consigam dividir essa história comigo. Apesar da gente saber que todo mundo sofre com pressão estética, com gordofobia ou que já ouviu ou falou uma frase gordofóbica, a gente ainda acha que tá sozinha, que ninguém vai entender. Só vai ficar tudo bem se a gente seguir juntas”. 

A quarta onda feminista, é caracterizada justamente pela presença dos ideais do movimento por meio das plataformas e midias sociais que espalham ideias importantíssimas relacionadas à discussão de corpo, gênero e performance de feminilidade. O caso de Andressa serve de exemplo não só para corpos gordos, ele reforça o tamanho da importância que a presença diversa de corpos negros, gordos, com deficiência, trans, vitiligo ou com uma infinitude de diferenças, se faz necessário nas mídias em geral. Como uma grande rede de terapia em grupo, a presença de pessoas com corpos reais na internet é capaz de mobilizar e ajudar indivíduos a lidar com seus conflitos em comum.

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