No último final de semana, Manaus, capital do Amazonas, e Rio Branco, no Acre, foram atingidas por fortes chuvas. Em ambas as cidades, foram registradas ocorrências de deslizamentos, desabamentos, enchentes e alagamentos. Somente em Manaus, 172 famílias estão desabrigadas, e em Rio Branco este número chega a 1,9 mil pessoas.
Analisando estes e tantos outros casos, percebe-se que as pessoas mais atingidas pelas consequências dos desastres ambientais (enchentes, alagamentos, deslizamentos e desabamentos) são as mesmas, têm CEP e cor de pele definidos: são as populações que vivem nas periferias ou em áreas rurais e estão vulnerabilizadas; pessoas pretas, indígenas e ribeirinhas. Estes grupos, marginalizados, não têm acesso e não são protegidos pelas políticas públicas.
Essa violência tem nome: racismo ambiental. O Mercadizar vai explicar o seu conceito e significado e por que todo cidadão deve estar ciente de como ela acontece.
No final dos anos 70, nos Estados Unidos, tornou-se público o caso do “Love Canal”, em que uma comunidade de operários de Love Canal, em Nova York, em sua maioria branca, descobriu que morava sobre um canal coberto que havia sido utilizado como local de despejo de uma grande quantidade de resíduos tóxicos. Em consequência das chuvas fortes, estes resíduos começaram a aflorar na cidade mais de vinte anos após a cobertura do canal, segundo Lays Silva, autora do artigo “Ambiente e justiça: sobre a utilidade do conceito de racismo ambiental no contexto brasileiro”.
Anos após a repercussão do caso, como explica Selene Herculano no artigo “Justiça ambiental: de Love Canal à Cidade dos Meninos, em uma perspectiva comparada”, moradores da comunidade de Warren County, na Carolina do Norte, protestaram quando uma empresa decidiu instalar um aterro de resíduos tóxicos próximo à comunidade. Esse material tóxico não podia ser enterrado, ficando exposto à céu aberto. Com o tempo, descobriu-se que a mesma empresa escolheu outras três comunidades negras para depositar seu lixo tóxico. Logo, estudiosos e a comunidade científica estadunidense começaram a pesquisar e debater esses casos, chegando à conclusão que o termo correto para designar a imposição desproporcional, seja ela intencional ou não, de rejeitos perigosos às comunidades racializadas é “racismo ambiental”.
O responsável por cunhar o conceito foi Benjamin Franklin Chavis Jr., líder afro-americano da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele definiu racismo ambiental como:
“[…] a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais, aplicação de regulamentos e leis, direcionamento deliberado de comunidades negras para instalação de resíduos tóxicos, sansão oficial da presença de veneno e poluentes com risco de vida às comunidades, e exclusão de pessoas negras da liderança dos movimentos ecológicos”.
Em entrevista ao Mercadizar, o Dr. Bruno Miranda Braga, professor e membro do Instituto Geográfico Histórico do Amazonas (IGHA), explica:
“Como conceito, o racismo ambiental vai descrever e destacar como a divisão desigual do bônus e do ônus do desenvolvimento – no caso, no modelo da produção social do espaço na nossa sociedade capitalista e predatória – afeta diretamente as populações negras, indígenas, latinas e minorias sociais que paulatinamente são as mais afetadas e feridas, dadas a uma degradação do meio ambiente contínua e expressa em suas catástrofes, como enchente, poluição do ar e deslizamento de terra, entre outros. Esse conceito tem uma relação próxima com a injustiça ambiental, pois trata do conceito étnico racializado, associando-se com o colonialismo, o neoliberalismo e a colonização. Então, ele é um conceito que faz parte do cotidiano da população do globo, especificamente das minorias.”
O racismo ambiental no Brasil
Em 2001, a Universidade Federal Fluminense (UFF), a FIOCRUZ/CESTEH e a FASE/Projeto Brasil Sustentável e Democrático organizaram o primeiro colóquio sobre justiça ambiental no Brasil. O evento, que teve a participação de ativistas e cientistas de várias nacionalidades, discutiu como o tema seria abordado no Brasil.
Com o objetivo de englobar a maior parte da população de forma amigável, decidiram que, naquele primeiro momento, seria melhor definir o conceito como “justiça ambiental”, para diferenciá-lo do movimento norte-americano e evitar comparações, segundo o artigo “Racismo ambiental, o que é isso?”, da autora Selene Herculano. É notória também a preocupação dos pesquisadores sobre como a sociedade brasileira receberia essa mobilização, visto que o Brasil é um país cujo racismo está enraizado nas estruturas que o construíram.
Com o passar do tempo, o termo justiça ambiental já não condizia com a realidade da maior parte da população brasileira, visto que, historicamente, a nossa sociedade patriarcal, branca, colonizadora e escravocrata não dava condições para as “minorias” residirem na mesma localidade que suas famílias, obrigando a população de pretos, pardos e indígenas a ocuparem áreas periféricas, como, por exemplo, morros e áreas alagadas. A consequência da marginalização dessas pessoas é vista até hoje, quando a força desproporcional da natureza causa vítimas em bairros em que a maior parte da população é de classe média baixa, pobre e não branca.
O recorte do racismo ambiental na Amazônia
Quando se traz o debate para a região amazônica, é possível enxergar nitidamente, com base no conceito, como o racismo ambiental sempre esteve presente na história das pessoas que aqui residiam. O Dr. Bruno Miranda Braga explica como e desde quando o racismo ambiental se faz presente na Amazônia:
“Historicamente, a própria posse tomada da Amazônia, parte de um processo colonial, automaticamente já agregou um racismo ambiental na [região], já trouxe um peso ideológico. Então pensar o racismo ambiental na Amazônia é pensar principalmente nas minorias, nas populações tradicionais que compõem o nosso ecossistema. Se tirarmos toda a ideia de romantização que temos das populações tradicionais – ribeirinhas, por exemplo –, essas pessoas vivem um racismo ambiental ainda hoje muito presente, e [não possuem] condições de desenvolvimento ou melhoria de vida. Se a gente for tomar, por exemplo, acesso à internet, acesso a água potável, acesso a energia elétrica, postos de saúde, escolarização, essas pessoas não possuem, ainda, uma formação adequada dentro do regimento educacional.”
A partir desta declaração, podemos entender que o racismo ambiental não diz respeito apenas a desastres ambientais ocasionados especificamente pela natureza, mas também à forma como a estrutura política e social do país trata a população como um todo. Essa questão fica ainda mais visível e legível historicamente quando Bruno ressalta a relação que o Brasil tem com a Amazônia.
“Se a gente for pensar no processo de colonização do Brasil, já havia duas colônias portuguesas na América: o Brasil, com sede em Guanabara, e a Amazônia, com sede em Belém. Então eram duas coisas diferenciadas. Historicamente, a Amazônia só foi agregada ao Brasil em 1823, um ano depois do processo de independência. Então é algo que marcou esse isolamento, porque ainda hoje as pessoas a consideram uma região “isolada”, “inóspita”, aquela coisa do manto verde que não se vê quem está embaixo. Então tem essa estrutura muito forte, muito pesada, se tratando da Amazônia, na qual as comunidades tradicionais, as populações indígenas e ribeirinhas, são vítimas. O caso Yanomami que a gente vê hoje é um exemplo clássico desse abandono, desse distanciamento que se tem em relação com a Amazônia.”
Dos dados ao exemplo
Segundo dados do IBGE, de 1º de janeiro de 2013 a 1º de junho de 2022, foram registrados 1.777 óbitos por consequências das chuvas – como deslizamentos de terra e afogamentos. Os quatro últimos anos foram os mais mortais da década, com 320 pessoas morrendo todos anos, em média, por causa dos desastres decorrentes. Ao buscar exemplos, citaremos três casos no contexto Amazônico.
- Caso Yanomami em Roraima
Um total de 570 crianças das Terras Indígenas Yanomami morreram por desnutrição. Além disso, há registros de degradação ambiental, morte violenta de indígenas, e aliciamento e estupro de meninas indígenas por meio do garimpo ilegal.
- Deslizamento de terra no bairro Jorge Teixeira, em Manaus
No início de março, fortes chuvas causaram o deslizamento de terras em áreas do bairro localizado na Zona Leste da capital amazonense. Oito pessoas morreram, sendo quatro delas crianças.
- Apagão no Amapá
Em 2020, o apagão que aconteceu no Amapá é considerado o maior blackout da história do Brasil: foram 22 dias sem energia elétrica. A falta de soluções rápidas afetou o abastecimento de água, a compra e o armazenamento de alimentos e os serviços de telefonia e internet, entre outros.
Racismo ambiental x racismo estrutural
Após toda essa discussão, você chegou a pensar se o racismo ambiental tem alguma relação com o racismo estrutural? Questionamos o Dr. Bruno Miranda se um pode ser entendido como uma consequência do outro.
“Com certeza! O racismo estrutural está enraizado nas estruturas do nosso país. Quando as pessoas atrelam o lugar de origem, o lugar que a pessoa habita, como um lugar ruim, alocam uma carga ideológica na origem da pessoa, e isso já fundamenta um racismo ambiental muito grande. É interessante pensar que essas minorias étnicas e sociais, no caso brasileiro em particular, têm uma topofilia, têm aquele apego ao lugar. A gente não pode esquecer o sentimento. Milton Santos, em uma obra chamada ‘Natureza dos pássaros’, coloca isso, o que torna interessante pensar no caso brasileiro – porque as pessoas têm sentimento ao lugar; o lugar acarreta sentimento enquanto categoria geográfica. Mas também existe toda uma carga social, uma necessidade de se estabelecer ali. Ninguém mora em uma encosta podendo morar em outra área. Ou seja, há uma necessidade, há todo um discurso, todo um decurso que enfatiza isso.”
O racismo tem várias faces, e o ambiental é mais uma delas. O tema pode até ser relativamente recente, mas o problema é antigo, e as vítimas no Brasil são as mesmas desde 1500. A ausência de conhecimento, debate e políticas públicas sobre o tema dificulta a busca por soluções. Por isso, é importante que todos nós, como cidadãos e agentes de mudança, cobremos quem tem a responsabilidade de buscar e criar soluções: nossos governantes eleitos.
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